Bob Marley e o Libertarianismo

2

Bob Marley odiava a política. E amava a liberdade.

O rastafarianismo é uma religião que surgiu na Jamaica, nos anos 1930. É classificado tanto como um movimento religioso, quanto como um movimento social. Desde a sua origem, o etos do rastafarianismo é antiestatal. E não por acaso, já que ele surgiu como uma resposta direta às injustiças perpretadas pela Grã-Bretanha aos jamaicanos, questionando a legitimidade do estado colonial. Apesar da perseguição brutal por parte da coroa britânica, eles continuaram firmes em sua luta contra o Leviatã. O fundador da religão, Leonard Howell, foi um constante alvo do estado, já que não se cansava de expor as agressões dos políticos e de seus sicários. Se quiser saber mais sobre a história do rastafarianismo e a corajosa luta dos jamaicanos contra o Leviatã, assista a um vídeo meu chamado “Rastafáris Contra O Estado”.

No auge dessa luta, no dia 6 de fevereiro de 1945, em Nine Mile, um vilarejo localizado bem no meio da Jamaica, nasceu um garotinho chamado Robert Nesta Marley, filho de um britânico branco e de uma jamaicana negra. Desde cedo, Robert – ou Bob, para os íntimos – demonstrou aptidão e talento para a música, aprendendo a tocar violão, cantar e compor. Aos 20 anos, Bob Marley se converteu ao rastafarianismo. Foi bem nessa época, em meados dos anos 1960, que um dos principais veículos para a fé rastafári passou a ser um estilo musical recém-surgido, o “reggae”, usado como forma de louvor a Já (Deus) e de resistência social e política. Juntamente com Peter Tosh e Bunny Wailer, Bob Marley fundou uma banda chamada “The Wailers”, com a qual gravou vários álbuns e emplacou vários sucessos.

Pois bem, aquelas idéias antiestatais de Leonard Howell foram essenciais para inspirar Bob Marley e seus colegas de banda. Por exemplo, quando os Wailers fundaram uma gravadora em 1970, ela foi batizada de “Tuff Gong”, o apelido de Bob Marley. De onde vinha esse apelido? Era justamente uma homenagem a Howell, cujo apelido era “The Gong”. Assim como Howell, Bob Marley não era um libertário no sentido estrito da palavra. Contudo, suas idéias tinham vários pontos em comum com o libertarianismo. Por exemplo, a desconfiança do poder centralizado, chamado no rastafarianismo de “Babilônia”. Ou ainda, a luta pelos nossos direitos naturais. Ou ainda, a liberdade de pensamento e autonomia individual. Para ilustrar isso, comentarei aqui quatro músicas desse grande artista. A elas então!

Comecemos com “Get Up, Stand Up”, clássico de 1973 e um hino à autonomia individual e à resistência à tirania. No refrão, Bob Marley canta: “Get up, stand up: stand up for your rights!” Os libertários argumentam que as pessoas têm o direito inato à propriedade, que pode e deve ser defendida das agressões. O apelo à “luta por seus direitos” se alinha perfeitamente com a ênfase libertária na autopropriedade e na não-agressão. Somos responsáveis por nos defender da coerção, seja do estado, seja de outros agentes. Marley canta: “Você pode enganar algumas pessoas algumas vezes, mas você não pode enganar todo mundo o tempo todo.” Temos aí uma mensagem claríssima aos políticos. Por mais que tentem ludibriar a todos – e muitas vezes até consigam ludibriar um grande número de pessoas –, uma hora a casa cai.

Ainda, a música diz em certo momento: “A maioria acha que o grande Deus virá dos céus”. Mais do que espiritual, essa é uma crítica política. Os libertários se opõem à idéia, tão comum entre os senhores bovinos gadosos, de que a salvação virá do estado ou de líderes carismáticos ou de “messias”, que nos salvarão de nós mesmos. Ao contrário, a solução tem de vir de baixo para cima, por meio de cooperação voluntária, autossuficiência e ajuda mútua. E a canção diz também: “E agora você vê a luz, lute por seus direitos!”. Esses versos ressaltam que nós somos responsáveis por nossos destinos. Marley conclama por um despertar – não no bizarro sentido marxista de luta de classes –, mas no sentido de responsabilidade pessoal, que é um corolário libertário central. “Get Up, Stand Up” é um clamor à autolibertação.

Uma outra música de Bob Marley com uma letra bastante libertária é “Revolution”, de 1974. Nela, o artista defende a idéia de que o estado não deve governar nossas vidas. Canta ele que devemos nos afastar do socialismo, isto é, do planejamento central, do coletivismo, da coerção e da política. Diz a música de forma contundente: “Nunca deixe um político lhe fazer um favor, eles vão querer controlá-lo para sempre.” Como é isso verdadeiro, não? Eventuais benefícios que o estado nos dá vêm sempre com um preço alto demais; a saber, nossa liberdade. Ainda, “é preciso uma revolução para encontrar uma solução”, canta ele. Embora a “revolução” possa ser interpretada vagamente, do ponto-de-vista libertário, podemos vê-la como um desmonte das instituições coercitivas em prol dos direitos individuais e da cooperação voluntária.

Outra música sobre a qual quero falar é “Redemption Song”, a última faixa do último álbum lançado por Bob Marley em vida, “Uprising”, de 1980. Foi considerada pela Rolling Stone uma das melhores músicas de todos os tempos. Ela começa com os versos: “Velhos piratas, sim, eles me roubaram/ Me venderam para os navios mercantes”. Bob Marley alude aí à escravidão, o ápice da violação da autopropriedade. Assim como em outros países, o colonialismo e o tráfico transatlântico de escravos deixaram cicatrizes profundas na sociedade jamaicana, que levaram ao desenvolvimento do rastafarianismo. No refrão, ele canta: “Estas canções de liberdade/ São tudo que tenho.” Mesmo que eles nos tenham tirado todo o resto, não poderão nos tirar nossos ideais, nossa esperança e nossa capacidade de expressão.

Muito bem, mas é na segunda estrofe que Bob Marley coloca os dois versos mais libertários da canção e, talvez, de todas as suas músicas. Canta ele: “Libertem-se da escravidão mental/ Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes”. Essa escravidão mental pode ser encarada como o controle ideológico, a propaganda e os efeitos psicológicos do autoritarismo. Aliás, em Banânia, sentimos isso na pele nos dias de hoje, não é verdade? De todo modo, cabe a cada um de nós se libertar dessas amarras. A liberdade começa no nível individual. Nós é que somos responsáveis por nossa liberdade. Não podemos depender do estado ou de salvadores externos para nos libertar, até porque isso seria contraditório. Assim, esses versos clamam por autonomia intelectual, pensamento crítico e libertação das doutrinas impostas.

Marley continua: “Até quando eles matarão nossos profetas, enquanto nós ficamos quietos apenas olhando?” Aqui ele critica a passividade das massas frente à violência estatal, algo que ficou claro durante a Grande Farsa, entre 2020 e 2023. Por “profetas”, podemos entender os defensores da liberdade que, corajosamente, desafiam as estruturas de poder estabelecidas. Os versos não só criticam a supressão da dissidência por parte das autoridades centrais, como também servem de alerta contra a passividade diante da tirania. De modo geral, “Redemption Song” defende que rejeitemos a escravidão mental e política, assumamos a responsabilidade pessoal, resistamos às autoridades ilegítimas e defendamos a liberdade. Marley não clama por uma revolução pela força, mas sim pela consciência, coragem, palavras e arte.

A quarta música é o clássico, “I Shot The Sheriff”, de 1973. O protagonista é um fazendeiro, um pequeno empreendedor, cujo nome desconhecemos. Enquanto tenta desenvolver em paz a sua atividade produtiva, é repetidamente perseguido por um agente do estado: “O xerife John Brown sempre me detestou/ Por quê? Não sei/ Sempre que plantava uma semente/ Ele dizia: ‘Mate-a antes que cresça’.” O protagonista não cometeu crime nenhum e está sendo perseguido simplesmente por rixas pessoais. Em certo momento, o protagonista, justamente armado face à opressão, tem de atirar no xerife para não ser morto. “Meus reflexos falaram mais alto/ E o que tiver que ser será.” É um retrato de como a violência, usada defensivamente, é consistente com o Princípio da Não-Agressão. “Atirei no xerife, mas juro que foi em autodefesa.”

Ilustrando a corruptibilidade da pseudojustiça estatal, o protagonista é falsamente acusado por um outro crime, o assassinato de um certo delegado. “Atirei no xerife/ Mas não atirei no delegado.” Apesar da injustiça da situação, ele não desiste e se dispõe a lutar para provar sua inocência. A mensagem da canção não é de amoralidade ou de não-responsabilização, ao contrário. O protagonista insiste que “se eu for culpado, pagarei”. A narrativa principal da música é sobre um homem enfrentando o Leviatã, contra a aplicação da legislação positivista, inerentemente incoerente e injusta. Os libertários consideram o indivíduo como a unidade básica de preocupação ética e criticam o estado – por definição, antiético. O xerife representa o estado, enquanto o narrador simboliza o indivíduo soberano levado ao seu limite.

Bob Marley sempre demonstrou sua antipatia pela política institucional. Na sua Jamaica, ele procurava manter distância dos dois grandes blocos partidários: o comunista Partido Nacional Popular e o conservador Partido Trabalhista. Ambos tentaram associar suas imagens à de Bob Marley, mas ele sempre se manteve neutro, com o desejo genuíno de unir a nação. Em certa entrevista na Nova Zelândia, em 1979, questionado sobre se envolver com política, respondeu: “Cara, você fala em ‘mexer com política’, não sei o que é isso. Agora, levantar e falar pelos meus direitos, isso eu sei o que é… Tudo o que tenho é a minha vida.” Para ele, todos nasciam iguais, e ninguém tinha o direito de governar os outros. Pois é, certíssimo ele! Mais libertário do que isso, impossível, não é mesmo?

Marley se posicionava contra a guerra e a grande opressão estatal, sendo, provavelmente sem intenção, um defensor das idéias libertárias. A visão de mundo dele girava em torno da liberdade, da natureza e da dignidade humana. Dizia ele: “Nunca serei um político, nem sequer pensarei de forma política. Eu só lido com a vida e a natureza.” Marley também questionava o proibicionismo, que causava e ainda vem causando inúmeros problemas. Para ele, lutar pela liberdade era fundamental: “Melhor morrer lutando pela liberdade do que ser prisioneiro por todos os dias da sua vida.” Suas palavras e atitudes refletem um espírito livre, profundamente conectado com os valores humanos universais. Mas e aí? Você já tinha pensado nessas músicas por esse ângulo? Se lembra de outras músicas com viés libertário? Comente aqui, por favor.

 

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Grande Bob Marley ! Pelas letras de suas excelentes músicas, também sempre enxerguei nele um forte viés pró-liberdade e contra o estado (cujo destino de seus apologistas mais ferrenhos seria a reposta à pergunta retórica em One Love: “[…]is there a place for the hopeless sinner who has hurt all mankind just to save his own beliefs ?”).

  2. Texto comovente!
    Pena que a Brasil Paralelo, com seu esplêndido labor, expôs de forma magistral o lado oculto do mais conhecido intérprete do reggae que se há notícia; pregava o amor e a liberdade, enquanto levava amantes em suas turnês e até mesmo agredia fisicamente a esposa, vivendo um relacionamento aberto não muito diferente das digníssimas modernetes. Sem contar que o estilo musical que auxiliou em popularizar mundialmente é a trilha sonora de usuários contumazes de cannabis que geralmente vomitam asneiras, por efeito do referido entorpecente. Não à toa detesto reggae, assim como abomino a música dos anos 60, popularizada pelos hippies imundos!

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui