João de Lugo (1583-1660)

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João de Lugo nasceu em 1583.[1] Foi o terceiro filho de João de Lugo e de Teresa de Pisa e Quiroga. Passou a sua infância em Sevilha, criando fortes vínculos com esta cidade, por isso passou a assinar as suas obras como “Ionnes de Lugo Hispalensis”. A precocidade intelectual de Lugo era tal que com três anos de idade já conseguia ler livros. Estudou gramática, retórica e artes no colégio São Hermenegildo de Sevilha, onde aos treze anos defendeu em público uma tese sobre lógica. Em 1599 e 1601-1603, estudou o cânon e leis em Salamanca. Terminado o noviciado em Vilagarcía e Valladolid, foi cursar filosofia em Pamplona no início de 1605. Estudou teologia em Salamanca de 1607 a 1611. Foi professor de filosofia em Monforte de Lemos em 1612, em Medina dele Campo em 1613 e em León de 1614 a 1617; foi professor de teologia em Valladolid e Salamanca de 1617 a 1621. A sua fama como professor de teologia atraiu a atenção do general dos jesuítas, Muzio Vitelleschi, por quem foi recomendado em Roma em 1621, onde ensinou teologia no Colégio Romano até 1642. O ensino de João de Lugo em Roma foi brilhante; as suas conferências, mesmo antes de serem impressas, eram distribuídas pelos copistas em outros países. Quando o general da Companhia ordenou-lhe imprimir as suas obras, obedeceu, e sem ajuda de ninguém, preparou o material para os primeiros três volumes num período de cinco anos (1633, 1636, 1638). Quando estava para publicar o quarto volume, De iustitia et iure, os seus superiores consideraram conveniente que o dedicasse ao Papa Urbano VIII; teve que apresentá-lo ele mesmo ao Papa, que ficou tão surpreso e feliz com a erudição do teólogo que o consultava frequentemente, e em 1643 nomeou-o cardeal.

João de Lugo não foi só um homem de grandes conhecimentos, como também de uma grande virtude; publicou as suas obras só por obediência, e sempre manteve a singeleza e humildade, de tal modo que rejeitaria, se não fosse por ordem do Papa, a nomeação de cardeal. A sua generosidade com os pobres era muito grande, e mesmo possuindo uma renda baixa, distribuía diariamente entre eles pão, dinheiro e mesmo remédios, tais como quinina, então recentemente descoberta.

Faleceu em 20 de Agosto de 1660 e foi enterrado perto da tumba de Santo Inácio de Loyola na igreja do Santíssimo Nome de Jesus em Roma.

Obra

João de Lugo é considerado um dos teólogos mais ilustres da Companhia de Jesus. Alfonso María de Ligorio não hesitou em chamá-lo de o maior teólogo moral depois de Santo Tomás. Segundo Charles E. O´Neill e Joaquín Mª Domínguez, possuía uma mente crítica e penetrante, com grande sutileza nos seus raciocínios. Consultava e submetia a profundo exame as mais diversas opiniões e expunha a própria com grande clareza. Buscava a concisão, mas sem que o problema perdesse profundidade e sem omitir nada que pudesse conduzir ao seu esclarecimento. Evitava a excessiva insistência em pontos que não mereciam um rigoroso exame ou em considerações inúteis. Imprimiu à sua investigação um selo nitidamente pessoal e preocupou-se em renovar a filosofia e teologia escolásticas.[2]

No que tange ao pensamento econômico, João de Lugo é considerado o último grande representante do renascimento escolástico espanhol. Neste campo, a sua obra mais significativa é De iustitia et iure e mais concretamente as disputas XXV- sobre a usura-, XXVI- sobre compra e venda- e XXVIII- sobre as mudanças.

A abordagem econômica de João de Lugo, do mesmo modo que a do resto dos autores escolásticos, parte da sua reflexão sobre filosofia moral. Buscavam conhecer melhor os temas econômicos para poder emitir um julgamento sobre o que era bem ou mal, para discernir o que era lícito do que não. Contudo, como assinalou Fabio Monsalve, isto não diminui a validade científica das conclusões econômicas alcançadas pelos escolásticos.

Esta finalidade moral não invalida, em absoluto, a dimensão analítica dos seus tratados […] A razão normativa expunha o problema, mas o método para conhecê-lo era estritamente científico enquanto articulado pela observação e interpretação dos fatos. Esta observação e interpretação permitia-lhes desentranhar as circunstâncias que rodeavam um negócio. Só depois de obter esse conhecimento pronunciavam-se sobre a licitude ou ilicitude do mesmo.[3]

A preocupação moral conduzia à análise econômica: conhecer o valor, o preço justo dos bens, era o único caminho que, a posteriori, permitiria determinar se um contrato foi justo ou injusto. Em outras palavras, era necessário responder primeiro à pergunta: qual é o valor de um bem?, para poder responder à pergunta: foi uma troca justa?[4]

Os tratados De iustitia et iure são uma tentativa de analisar os diferentes tipos de contratos existentes e ver quais condições respeitavam a justiça comutativa e quais não; ou seja, em que atos uma das partes saía prejudicada ou beneficiada. Para João de Lugo, esta exigência da justiça comutativa é um requisito lógico da vida em comunidade, uma necessidade derivada da existência das sociedades. O homem não pode sobreviver por si só, assim se une a outros e deste modo desenvolve-se completamente como ser humano. A sociedade civil, assim constituída, garante a paz e ajuda necessárias para que o homem satisfaça as suas necessidades. Deste modo surgiram o comércio, a divisão social do trabalho e a própria sociedade. Segundo Lugo, nenhum homem tem o direito de abusar de outros, pois iria contra a própria lógica que explica a constituição da sociedade.

Para João de Lugo, os negócios eram completamente lícitos. A possibilidade de mentiras, fraudes, enganos, etc., não são características intrínsecas dos negócios mas sim da vontade dos homens que pode viciar a negociação que por si só não é nem boa nem má, só necessária.

Negociar não só é lícito como também necessário à nação, já que pode ser exercida com um fim honesto como o sustento da família ou a ajuda aos pobres. Também é lícito o lucro que se obtém do ato de negociar devido à indústria que se empenhou em melhorar o bem, ao transporte da mercadoria, à variedade dos preços entre lugares ou tempos diferentes. (Lugo 26: 21-22)

Como escolástico, João de Lugo seguia uma metodologia que buscava a explicação dos fenômenos a partir dos agentes causais, em oposição à visão mecanicista que se começou a desenvolver a partir da Revolução Científica onde acreditava-se que bastava explicar como ocorrem as coisas sem necessidade de buscar o agente causal que as produz. Na visão mecânica desvinculam-se os fatos do agente que os produz: a economia se transforma numa máquina que funciona só, com independência dos indivíduos. Ao invés disso, para os escolásticos, do mesmo modo que para os posteriores economistas da Escola Austríaca, é possível apreender os fatos se não for à partir do agente que os produz. Segundo Monsalve, “face à visão mecanicista da ilustração, na escolástica se aposta em uma visão em que o indivíduo e a sua liberdade são protagonistas da sociedade”.[5]

O enfoque metodológico de João de Lugo levou-o a defender uma abordagem subjetiva à questão da valoração dos bens.[6]

A variação do preço vulgar ou natural deve-se a circunstâncias muito diversas e não, certamente, à perfeição intrínseca e substancial do objeto que se aprecia, senão à sua utilidade para as necessidades humanas; não só a esta utilidade particular senão à estima em que se tem [essa utilidade]. (Lugo 26: 42).

Lugo diferencia expressamente entre a utilidade do bem para satisfazer necessidades humanas e a estima que os homens têm dessa utilidade. Dos dois conceitos é o segundo a verdadeira fonte do valor dos bens.

João de Lugo reconhece, de forma coerente com uma teoria subjetiva do valor-utilidade, que é possível admitir valorações diferentes em cada comunidade sobre qual seja o valor dos bens. Os preços estabeleciam-se a partir da valoração comum. O conceito de valoração comum, segundo disse Raymond de Roover, parece ser idêntico a estimatio fori ou avaliação de mercado, já que as duas expressões eram usadas indistintamente pelos escolásticos.[7] Para Lugo, os preços flutuam não devido à perfeição intrínseca e absoluta dos artigos e sim como consequência da sua utilidade a respeito da necessidade humana, e por conseguinte só por causa da valoração.[8] Este processo sustenta-se no livre e voluntário consentimento, na dimensão moral dos agentes econômicos e na reta razão. Os preços não se fixam de maneira unívoca pois é impossível saber de maneira determinada, consideradas as diferentes valorações, qual é o valor matematicamente justo do bem. Assim, como destacou Huerta de Soto, João de Lugo deu-se conta da impossibilidade de alcançar os hipotéticos preços de um modelo de equilíbrio. O preço de equilíbrio dependia de tão grande quantidade de circunstâncias específicas que só Deus podia conhecê-lo («pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum»).[9]

Segundo João de Lugo, partindo da subjetividade e das diferentes estimas dos indivíduos sobre a utilidade dos bens, teremos que reconhecer como intercâmbios justos aqueles que poderiam não parecer justos.[10]

Assim ocorre com os nossos jogos e vidros, que os etíopes trocam justamente por ouro devido ao fato que eles comumente estimam muito tais coisas, como também os japoneses, que compram a um preço alto algumas coisas antigas e de barro cozido, que entre nós carecem de valor (Lugo 26:42).

Lugo rejeita a ideia do valor-trabalho, negando que os mercadores pudessem incluir no preço de venda os custos que incorriam. Se isto fosse verdade não existiria o preço-justo (que para Lugo coincidia com o preço de troca) já que então uma das partes poderia aumentar o preço unilateralmente. Os preços estabelecem-se mediante regateio através da estimação comum.[11]

João de Lugo denominava “preço natural” o preço justo que se chegava por meio da valoração dos homens. O preço natural é afetado por: 1) a maior utilidade que possui o bem para satisfazer necessidades e a estima que essa utilidade tem; 2) a escassez do que se vende; 3) a abundância de compradores; 3) a abundância de dinheiro; 4) os modos de comprar. Desta relação infere-se que Lugo conhecia os mecanismos de oferta e demanda e a sua incidência no preço.

Existem outras circunstâncias que podem afetar as operações particulares: 1) a existência de lucro cessante ou dano emergente para alguma das partes derivados da operação; 2) o risco que alguma parte corre de não receber o pagamento; 3) a compra de obrigações ou créditos a menor preço que o nominal pela existência de incerteza sobre o débito; 4) a forma da venda; 5) quando o vendedor tem particular e especial apreço pela coisa vendida; 6) quando a transação se realiza para favorecer à outra parte.

Para João de Lugo além do preço natural existia outra maneira de determinar o preço justo: através do decreto do príncipe ou magistrado. Chamou este preço de “preço legal”. O preço legal é um preço justo sempre que a autoridade o estabeleça tendo em conta o bem comum e se adeque ao preço natural existente com anterioridade à lei, a menos que haja circunstâncias de urgência.

No que diz respeito ao dinheiro, para João de Lugo este surgia na sociedade como meio de superar os inconvenientes do escambo. Ao introduzir o dinheiro já não se trocam dois bens entre si mas se paga um “preço” por uma mercadoria. Em consequência desta mudança o metal ou metais escolhidos como padrão monetário converter-se-ão em dinheiro. Expõem-se então o problema da dupla valoração da moeda: sobre dinheiro com um valor legal sobre tal quantidade de metal. Lugo questiona se o príncipe tinha potestade para cunhar uma moeda com valor sensivelmente diferente do natural. A cunhagem de moeda outorgava um grande poder ao príncipe da república. Este podia ser tentado a cunhar moeda com valor legal acima do natural em relação com a quantidade de metal que incorporava. Desta forma podia solucionar em curto prazo problemas da suas finanças. Lugo previu esta atitude e a possibilidade de fixação arbitrária do valor da moeda.[12]

Para impor o valor legal o príncipe adota e deve atender também ao valor natural […], pois não poderia sem extrema necessidade impor às moedas de couro o valor de uma moeda de ouro, já que o uso de tal moeda não poderia introduzir-se e reter-se sem enorme prejuízo dos súditos (Lugo 28: 5).

No que diz respeito ao fenômeno dos juros, ainda que achasse que o dinheiro em si mesmo era estéril e era contra da usura, reconheceu certas exceções que, na prática, justificavam a cobrança de juros em todos os empréstimos.[13] Estas exceções eram o risco e o lucrum cessans. No que diz respeito ao risco, segundo Lugo era quase impossível emprestar uma quantidade de dinheiro com a completa segurança de que este seria devolvido. No que diz respeito ao lucro cessante, este conceito, que pode considerar-se uma percepção embrionária da preferência temporária,[14] referia-se a consideração devida ao prestamista em virtude das oportunidades de ganho que se perdiam devido à concessão do empréstimo. Lugo alargou o conceito para incluir não só o benefício que se renunciava como também as expectativas de benefício remoto.

Conclusões

João de Lugo foi o último dos grandes autores escolásticos da chamada “Escola de Salamanca”, a quem Schumpeter considerava os primeiros economistas verdadeiros da história. Tanto no seu método como nas conclusões alcançadas, Lugo antecipou muitas das importantes descobertas da Escola Austríaca de economia, como a existência de relações causais na determinação dos preços, a lei da oferta e demanda, a valoração subjetiva dos bens, etc.

A afinidade entre o pensamento de João de Lugo e o de Carl Menger manifesta-se nas semelhanças entre o individualismo metodológico deste último e o método utilizado por Lugo, que destaca a posição do indivíduo nas relações econômicas. Segundo Schumpeter, João de Lugo foi tão preciso como Menger ao assinalar o componente utilitário e subjetivo do valor dos bens.[15] Tanto para Schumpeter como para Rothbard, em Lugo estão presentes todos os elementos de uma teoria completa da oferta e demanda e a única ausência é a do conceito de utilidade marginal desenvolvido no século XIX.

As semelhanças entre as formulações de João de Lugo e os da Escola Austríaca de economia foram destacadas também por Monsalve.

Na sua análise o preço justo depende sempre da utilidade dos bens, rejeitando explicitamente o custo de produção. A formulação apresenta-se nos mesmos termos que os da Escola Austríaca, com a única diferença do conceito marginal.[16]

Em conclusão, no que diz respeito à sua obra econômica, podemos afirmar que João de Lugo constitui um magnífico exemplo da força do individualismo metodológico e da análise lógico-dedutiva como método de estudo da economia e que, na prática deste método, João de Lugo “aplica à fundo de tal maneira, que as razões que ele deduz são virtualmente irrefutáveis”.[17]

 

 

Tradução de Fernando Chiocca

Artigo original aqui.


Notas

[1] Para a biografia de Xoan de Lugo ver Charles E. O’Neill e Joaquín Mª Domínguez, Diccionario Histórico de la Companhia de Jesús. III (Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2001), pp. 2438-2439; Joseph de Ghellinck, “John de Lugo”, em The Catholic Encyclopedia. Vol. 9 (New York: Robert Appleton Company, 1910) y “Pope Urban VIII (1623-1644) Consistory of July 13, 1643 (VIII)” em The Cardinals of the Holy Roman Church. Biographical Dictionary.

[2] O’Neill y Domínguez, Diccionario Histórico de la Companhia de Jesús, p. 2438.

[3] Fabio Monsalve Serrano, “Aproximación al pensamiento económico de la escolástica tardía a través del cardenal Juan de Lugo, S.J.”, Revista de Fomento Social, 58 (2003): 286.

[4] Fabio Monsalve Serrano, El pensamiento económico de Juan de Lugo. Un estudio sobre sus teorías del precio justo, del dinero y del interés. Tesis doctoral, Universidad Castilla-La Mancha. Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales, Albacete, 2002, p. 124

[5] Monsalve, El pensamiento económico de Juan de Lugo, pp. 104-105

[6] Monsalve, “Aproximación al pensamiento económico de la escolástica tardía a través del cardenal Juan de Lugo, S.J.”, p. 292.

[7] Raymond de Roover, “El concepto de precio justo: teoría y política económica”, Estudios Públicos, 18 (1985): 28.

[8] Alejandro A. Chafuen, Raíces cristianas de la economía de libre mercado (Santiago de Chile: Fundación para el Progreso, 2009), pp. 198-199.

[9] Jesús Huerta de Soto, “Juan de Mariana y los escolásticos españoles”, Dendra Médica. Revista de Humanidades, 12, 1 (2013): 38.

[10] Monsalve, “Aproximación al pensamiento económico de la escolástica tardía a través del cardenal Juan de Lugo, S.J.”, p. 292.

[11] Monsalve, “Aproximación al pensamiento económico de la escolástica tardía a través del cardenal Juan de Lugo, S.J.”, p. 293.

[12] Monsalve, “Aproximación al pensamiento económico de la escolástica tardía a través del cardenal Juan de Lugo, S.J.”, p. 305.

[13] Murray N. Rothbard, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought Volume I (Auburn: Mises Institute, 2006), pp. 126-127.

[14] Gerard Casey, “The Major Contributions of the Scholastics to Economics” (03-12-2010).

[15] Schumpeter (1994: 137).

[16] Monsalve, El pensamiento económico de Juan de Lugo, p. 265.

[17] Alfonso María de Ligorio, citado por O’Neill y Domínguez, Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús. III, p. 2439.

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