Libertários e os serviços estatais

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Não é raro eu me deparar com posts em redes sociais, e artigos apontando uma suposta incoerência por parte dos libertários que utilizam serviços estatais.

Exempli gratia: “é libertário mas chamou a polícia” ou mesmo “é libertário mas processou alguém no tribunal estatal”, entre outros.

Esta é uma versão sutil da falácia do espantalho, em que se apresentam argumentos que não refutam a proposição original, e sim uma caricatura maldosa da mesma como no exemplo:

Sujeito 1

  • – Não acho justo o governo cobrar impostos.

Sujeito 2

  • – Você é um facínora que gosta de ver os pobres sofrerem.

Repare como em nenhum momento o sujeito 1 deu a entender que almeja o sofrimento dos pobres, pelo contrário, quer vê-los livre da injusta carga tributária. O sujeito 2, por não ter argumentos contra a proposição do sujeito 1, cria um “espantalho”, uma caricatura distorcida do sujeito 1, que não condiz com a proposição original, mas contra a qual o sujeito 2 possui argumentos.

Voltando à questão original, o uso de espantalhos está no cerne da suposta contradição apresentada. Embora libertários sejam contrários ao controle estatal sobre serviços, de modo algum são contrários a prestação do serviço em si, apenas acreditam que indivíduos livres deveriam poder prestá-los.

Não se trata por exemplo de ser contrário a existência agências de segurança como a polícia, o que se defende é que não haja um monopólio baseado no uso da força, ou seja, querem agências privadas competindo pela preferência do cliente .

Assim como libertários não defendem que voltemos a usar luz de velas porque atualmente a geração de energia é baseada em monopólios e concessões estatais, não defendem também que paremos de usar tribunais para resolvermos disputas, defendem que energia seja produzida e comercializada livremente e que tribunais privados produzam justiça.

Sobretudo o libertarianismo trata da liberdade individual e da busca pela felicidade, ao passo que desdenha o coletivismo, o estado e o poder das elites políticas. Portanto, os princípios libertários se baseiam naqueles, ao enquanto enxergam por cima destes últimos. Ou seja, não se trata de uma filosofia de combate ao estado custe o que custar, se trata de liberdade, paz e felicidade. Combater a opressão estatal é apenas uma necessidade para tais fins.

Tendo estes fatores em vista, fica claro o porquê dos libertários não se privarem de necessidades básicas como eletricidade, água e segurança apenas para fazer birra contra o estado. Pelo contrário, a almejam poder desfrutar de todos esses serviços sem ser importunados pelo estado. Sendo assim não há incoerência alguma quando um libertário utiliza qualquer serviço estatal.

Até aqui acredito ter apenas formalizado um pensamento comum a muita gente, e que não causa polêmica. Deste ponto em diante causarei um pouco de discórdia e quem sabe até alguns comentários indignados.

Já concluímos que não há imoralidade em se utilizar serviços estatais, pois se tratam de bens e serviços importantes e os usuários não conseguem escapar do monopólio imposto a eles. Mas e a oferta destes serviços por parte de agentes privados, como fica?

Primeiramente gostaria de elucidar como se dá a prestação de serviços privados.

Para decidir prestar um serviço, um indivíduo precisa de um talento (no sentido amplo de capacidade), um público que atribua valor a este serviço, e claro precisa desejar fornecer este serviço. Exemplificando, um homem que saiba assar pães, que tenha vizinhos que precisam de pães, e que quer fazer pães, abrirá uma padaria. O mesmo vale para o açougueiro, o comerciante, e qualquer outro empreendedor.

O que acontece com o indivíduo que tem os talentos necessários para perseguir e capturar criminosos, deseja combater o crime, e tem disponibilidade para atuar em uma região onde ocorrem muitos crimes e há um público interessado em ter mais segurança local? Sem a existência do monopólio estatal imposto aos súditos, este indivíduo poderia abrir uma empresa de segurança para investigar crimes e levar criminosos a julgamento em tribunais independentes. Mas este não é o caso.

Este indivíduo com boas intenções acabará trabalhando em uma agência estatal do governo. E ele não o faz à contragosto, se sentindo lesado de seu direito de empreender, ele o faz de bom grado e com naturalidade, pois após 20 anos de doutrinação em escolas regidas pelo estado (seja diretamente, seja por influência do MEC no ensino privado) este indivíduo aceita como natural todo tipo de monopólio estatal estabelecido.

É aí que as coisas se complicam. O indivíduo do exemplo tem de fato a intenção de prestar um serviço útil e ser remunerado por ele e não percebe que ele pode estar sendo prejudicado pela coerção estatal. Como então avaliar se estamos tratando com um pária, alguém tão vil quanto o próprio estado, ou com uma pessoa de bem, que busca prestar um serviço que julga útil à população enquanto por conta da doutrinação não percebe a perversão da máquina que a emprega?

A índole da pessoa é observável a partir de como ela aplica o poder que o estado lhe delega. Veja que embora este poder tenha sido apropriado imoralmente pelo estado, o indivíduo não familiarizado com a ética da liberdade acredita estar exercendo um poder legítimo. Pessoas que se utilizam do estado para extorquir, furtar, ameaçar, agredir e fraudar são tão perversas quanto o estado, pessoas que se utilizam do estado para obstruir, por burocracias desnecessárias, a vida dos demais são um tanto perversas, e já aquelas que utilizam do estado para tentar aplicar o bom senso e evitar causar transtornos a inocentes são, de modo geral, pessoas de boa índole que foram treinadas pelo estado a não ver o mal com o qual compactuam.

Libertários não são contra o trabalho da polícia propriamente dito, prezam por serviços de segurança, o problema é o monopólio estatal da polícia, e os crimes sem vítima tipificados pelo estado. Um indivíduo que queira prestar serviços de segurança (uma vocação moral) é induzido desde a infância a servir o estado.

Mas, vocação e talento não são determinísticos, dirá o leitor. De fato, o indivíduo não precisa invariavelmente seguir uma determinada carreira estatizada, e pode trabalhar em outro lugar que não seja controlado pelo leviatã. Mas, se ele não percebe a perversão do estado, não fará essa distinção, e portanto irá escolher uma carreira baseada em suas preferências e percepções de necessidades das demais pessoas.

Há ainda mais um caso, o indivíduo conhecedor da ética libertária, mas que decide trabalhar para o estado. Quais são as implicações morais de servir ao estado sabendo de sua ilegitimidade? Nesse caso acredito que embora a abordagem filosófica seja diferente, a conclusão é semelhante.

Um indivíduo que percebe a ilegitimidade do estado e do seu monopólio sobre determinados serviços, mas que ao mesmo tempo percebe que existe a escassez de algum destes serviços, e que esta escassez é estrutural e causada pelo estado pode decidir que a coisa certa a se fazer é tentar prestar este serviço de maneira mais eficiente, mesmo que para isso tenha que se sujeitar a trabalhar para o estado.

Não se trata de “mudar o sistema por dentro”, o estado é intrinsecamente perverso, trata-se de um indivíduo prestar um serviço fundamental aos demais da única maneira possível no momento.

O combate ao estado se dá pelo surgimento de tecnologias e métodos que tornem o estado obsoleto, e que protejam as pessoas de seus mecanismos de espionagem, extorsão e intimidação. Tentar ignorar sua existência em muitos casos pode resultar em agressões físicas e roubo de propriedade, que por sua vez não podem ser ignorados.

O dogmatismo e a falta de empatia para compreender o que leva outras pessoas a fazerem as escolhas que fazem podem ser muito destrutivas para a propagação das ideias libertárias, uma vez que trazem conflito, estigma e simples agressão para ambientes onde poderia haver debate e aprendizado.

 

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo que mostra a importância de distinguir a crítica pertinente da realidade existente,ou seja não defendo mais o estado leviatã,mas os serviços prestados pelo mesmo ainda preciso deles,portanto não confundamos alho com bugalho,agora quem não precisa destes serviços(No caso os ricos)está na melhor posição e não cabe a nós criticá-los e nem invejá-los,mas sim admira-los e se existe rico desonesto que pague pelos seus crimes igual aos bandidos pobres…

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