O abuso da ciência na crise do Coronavírus

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A ciência desempenha um papel central na crise atual, não apenas investigando a natureza do vírus, mas também orientando as reações políticas à sua disseminação.

Leopoldina, a Academia Nacional Alemã de Ciências, emitiu uma declaração datada de 8 de dezembro de 2020:

    Apesar da perspectiva de um início da campanha de vacinação em breve, é absolutamente necessário do ponto de vista científico reduzir rápida e drasticamente o número ainda claramente elevado de novas infecções por meio de uma quarentena rígida.

Com este documento em suas mãos, a chanceler alemã, Angela Merkel, justificou uma quarentena rígida no parlamento em 9 de dezembro de 2020, invocando leis da natureza como a gravidade e a velocidade da luz, bem como a força do esclarecimento.

Pelo menos três coisas são absolutamente espantosas neste documento:

(i) afirma ser O ponto de vista científico, sem discussão, sem pluralidade de vozes para argumentar com razão e evidência;

(ii) toma como absolutamente necessárias medidas coercitivas por parte das autoridades políticas que implicam uma usurpação massiva dos direitos humanos básicos, sem nenhum obstáculo a ser superado entre a ciência que descobre os fatos e as proclamações normativas;

(iii) dada uma controvérsia sobre a adequação de tais medidas coercitivas no público em geral, a missão da Academia, que consiste em promover “uma sociedade cientificamente esclarecida e a aplicação responsável de conhecimentos científicos para o benefício da humanidade” é empregar sua autoridade e reputação para ajudar o governo: a ciência torna-se a ultima ratio para legitimar o planejamento central do estado da vida das pessoas, incluindo seus contatos sociais e vida familiar, e a suspensão dos direitos constitucionais que isso implica.

A ciência realmente serve ao propósito de esclarecimento. Mas também pode ser o caso de que o esclarecimento seja necessário contra as reivindicações de conhecimento na ciência e seu uso político.

O esclarecimento tem dois polos. Por um lado, há a libertação da humanidade expressa, por exemplo, na definição de esclarecimento de Immanuel Kant como “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.” em seu ensaio “Resposta à pergunta: O que são as luzes” (1784).

Por outro lado, existe o cientificismo, isto é; a ideia de que o conhecimento científico é ilimitado, abrangendo também a humanidade e todos os aspectos de nossa existência e que a sociedade pode ser planejada centralmente de acordo com esse conhecimento.

A tensão entre esses dois polos é óbvia: a preocupação do polo preconizado por Kant é que as pessoas usem sua liberdade para tomar suas próprias decisões ponderadas. Isso pressupõe que não há conhecimento – nem das ciências naturais, nem da filosofia, religião ou outras fontes – que possa prescrever ou mesmo impor-nos a decisão certa de tal forma que não haja alternativa.

O cientificismo, por outro lado, assume que o conhecimento científico pode prescrever as decisões apropriadas tanto no nível individual quanto no social. Este último é o que vivemos atualmente na crise do coronavírus: uma aliança da ciência e da política afirma ter conhecimento sobre como planejar a sociedade nesta situação, conhecimento que justifica a anulação da liberdade dos indivíduos e do Estado de Direito – neste caso, porém, não para alcançar um alegado bem comum, mas para evitar um alegado mal comum iminente.

Conhecemos muitos casos da história, em particular do século passado na Europa e especialmente na Alemanha, em que medidas coercitivas do estado foram legitimadas como absolutamente necessárias do ponto de vista científico e tiveram consequências devastadoras para as pessoas afetadas. É diferente desta vez? É possível e permissível interromper a propagação de um vírus por meio do planejamento central estatal com uma intervenção massiva na vida das pessoas – e especialmente nas vidas das pessoas que não têm muito tempo de vida – sem causar grandes danos?

Temos dois critérios para responder a esta pergunta:

  • o critério utilitário: o benefício para a sociedade como um todo (ou o dano evitado) das medidas coercivas é maior do que o dano que essas medidas causam?
  • o critério deontológico: há um limite para as intervenções do estado em determinada situação que é determinado pela liberdade e dignidade dos indivíduos como tais – independentemente de quão úteis essas intervenções possam ser?

Para mencionar apenas um entre os já numerosos resultados de pesquisas, de acordo com o metaestudo de John Ioannidis da Stanford University publicado pela OMS, a taxa de mortalidade por infecção de Covid-19 varia de 0,00% a 1,63% com um valor médio de 0,27%, dependendo da região. A grande maioria das pessoas falecidas tem mais de 70 anos e doenças anteriores significativas. Covid-19 é mais perigoso para pessoas de idade avançada e, em particular, com doenças pré-existentes. Para todos os outros grupos de pessoas, o perigo está dentro da faixa de riscos cotidianos geralmente aceitos (“Taxa de mortalidade por infecção de COVID-19 inferida a partir de dados de soroprevalência”, Boletim da OMS, ID do artigo: BLT.20.265892).

No entanto, a ideia é que quarentenas ou medidas coercitivas semelhantes podem salvar anos de vida na atual situação aguda: menos mortes devem ocorrer em conexão com Covid-19 e os hospitais devem ser aliviados. Seja como for, podem ser também perdidos anos de vida em consequência dos danos econômicos, de saúde e sociais causados ​​por tais medidas coercivas.

O resultado é preocupante, como já foi comprovado por um grande número de estudos. O dano em anos de vida perdidos supera muitas vezes o possível benefício em anos de vida ganhos, em todos os cenários, levando em conta a incerteza e, portanto, toda a gama de possíveis valores iniciais empregados para calcular os anos de vida ganhos e perdidos. Sob critérios utilitaristas, o veredicto sobre as medidas coercivas é, portanto, devastador.

Não temos a alternativa de não fazer nada ou suspender os direitos humanos básicos por meio de quarentenas e coisas do gênero. Quando surge uma onda de infecção que ameaça certo grupo de pessoas, eles e todos os demais ajustam espontaneamente seu comportamento; em tal situação, é tarefa do estado criar uma estrutura legal para a solidariedade com as pessoas vulneráveis, como preconizado, por exemplo, na Declaração de Great Barrington. Mas também do ponto de vista deontológico, por respeito à liberdade e à dignidade dessas mesmas pessoas, deve-se conceder a todos a liberdade de avaliarem por si mesmos os riscos que estão dispostos a correr por uma vida que consideram digna de ser vivida.

Ninguém tem o direito de usar coerção ao definir sua proteção pessoal como absoluta e desconsiderar as perspectivas de vida dos outros. A propagação do coronavírus não é um caso de defesa nem qualquer outro caso de perigo para a população como um todo. Consequentemente, não há justificação para suspender o Estado de Direito normal. É por isso que as restrições aos direitos fundamentais que continuam a ser impostas abrem um precedente preocupante. Elas diminuem as restrições para declarar o estado de emergência com a suspensão dos direitos humanos básicos de forma totalmente irresponsável.

Neste contexto de conhecimento que temos até agora, não é surpresa saber que a recente quarentena severa na Alemanha não fez nada para reduzir rápida e drasticamente o alto número de novas infecções. Mas, é claro, quando o planejamento político central da sociedade que alcança até a vida pessoal falha – neste caso, falha em impedir a propagação de um vírus – só pode ser culpa do comportamento de algumas pessoas (no caso aqui, aquelas pessoas que fortalecem seu sistema imunológico, saindo ao ar livre), mas nunca o fracasso da ideia do planeamento central, dada a prova científica da necessidade absoluta das medidas coercivas em questão.

Consequentemente, o governo de Merkel prolonga e endurece ainda mais o já rígida quarentena. É como no experimento de Milgram: alegar que a ciência exige que sejam impostos choques cada vez mais severos sobre as pessoas é o melhor meio disponível para fazê-las obedecer e evitar que usem sua própria razão para perceber o que está acontecendo. A ciência tem poder real – como meio de esclarecimento, mas também como meio de espalhar a escuridão e impedir as pessoas de pensar e tomar decisões por si mesmas.

Assim, mais uma vez provou-se ser fatal dissolver a tensão entre liberdade e cientificismo inerente ao esclarecimento em favor do cientificismo e seu uso político. Que erro ter achado que em 1990 isso ficou para trás. Claro, as ameaças do totalitarismo chinês e do fanatismo religioso islâmico já estavam e ainda estão entre nós. Mas essas são ameaças externas. Estamos cientes deles e sabemos como lidar com eles.

Indiscutivelmente muito mais preocupante é a ameaça de dentro de nossa própria elite na ciência, quando a propagação de um vírus pode ser usada como um pretexto para reviver o cientificismo e estabelecer uma aliança profana entre a ciência e a política para promover o planejamento estatal central da sociedade até mesmo da vida dos indivíduos e de seus contatos sociais.

O papel da ciência não deve ser o da religião estatal nos tempos pré-iluministas: no presente caso, como em todos os outros casos anteriores, não há conhecimento que possa ser empregado para justificar um planejamento estatal central da sociedade que se sobreponha à liberdade dos indivíduos e seus direitos constitucionais. O esclarecimento é também hoje a saída da imaturidade auto-imposta em que atualmente se encontra nossa sociedade a esse respeito.

 

Artigo original aqui.

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