Anarcosionismo

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Estima-se que o humano anatomicamente moderno habita este mundo há 300 mil anos e deu início a modernidade comportamental há 50 mil anos, mas somente os últimos 5 mil anos da história humana são conhecidos através da escrita. Durante grande parte deste período registrado, a região da Palestina foi palco de conflitos territoriais sendo sucessivamente ocupada por cineus, ceneseus, cadmoneus, heteus, ferezeus, rafaim, amorreus, cananeus, gergeseus, jebuseus, filisteus, egípcios, hebreus, assírios, babilônicos, persas aquemênidas, gregos/macedônios, romanos, bizantinos, persas sassânidas, árabes, cruzados europeus, mamelucos, otomanos, franceses, britânicos e sionistas europeus. Após milênios de disputas por terra, estes últimos ocupantes têm instigado um outro tipo de conflito, desta vez dentro do Libertarianismo, que também atingiu proporções bíblicas. Aparentemente há uma quase unanimidade entre os grandes nomes do Libertarianismo, do presente e do passado, que concordam que os sionistas são invasores e os árabes palestinos são vítimas desapropriadas. Mas fora desta “quase” unanimidade estão duas vozes estridentes que pensam o contrário. Uma é o professor Walter Block, um dos principais intelectuais libertários da história, que tem defendido os sionistas na grande mídia, em um livro e em altercações com outros grandes intelectuais libertários (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). A outra é o primeiro autoproclamado anarcocapitalista a ser eleito chefe de estado, Javier Milei, que pode não estar entre os maiores intelectuais libertários, mas é o que mais está sob os holofotes dos grandes meios de comunicação, e suas declarações pro-sionistas chegam ao grande público global.

Dado o peso dessas vozes dissonantes, vale a pena reconsiderar a questão: se os judeus são os verdadeiros proprietários da terra de Israel, como alegam Block e Milei, o conflito contra os árabes palestinos é uma guerra justa de defesa. Block e Milei também alegam que a forma como a guerra está sendo conduzida pelas FDI é a melhor forma de defesa possível, onde nenhum excesso é cometido e todas as casualidades de civis são danos colaterais inevitáveis neste tipo de guerra. Se eles estiverem certos, os libertários que condenam Israel estão errados. De acordo com os sionistas, os judeus foram expulsos de Israel à força e atualmente, séculos depois, estão apenas retomando o que é seu de direito. Seriam então os judeus, como um povo, os legítimos proprietários do território palestino?

A aquisição da terra

A alegada reivindicação de propriedade mais antiga vem de quando o habiru Abraão migra para a cidade de Hebron, localizada na terra de Canaã, que Deus havia prometido para sua descendência. Ali estabelecido, Abraão compra do hitita Efrom por 400 siclos (aproximadamente 4,5 kg) de prata a caverna Macpela para sepultar sua esposa Sara. De acordo com a narrativa da Bíblia, Jacó, o neto de Abraão, é renomeado Israel e tem doze filhos, que viriam a formar as Doze Tribos de Israel. Estes agora chamados israelitas acabam sendo escravizados no Egito, mas não todos eles; alguns continuaram habitando Canaã – a cidade de Salem, por exemplo segue em posse de israelitas. Os escravos israelitas se tornaram muito numerosos, até que o grande legislador Moisés liderou uma revolta e os libertou, conduzindo-os de volta à Terra Prometida, que estava habitada por outros povos e teve que ser conquistada à força. Assim teria se dado a reconquista:

                   “De repente, o muro de Jericó veio abaixo. O povo atacou a cidade, cada um do ponto onde estava, e a tomou. Com suas espadas, destruíram completamente tudo que havia dentro dela: homens e mulheres, jovens e velhos, bois, ovelhas e jumentos.” (JOSUÉ 6:20-21)

Este genocídio está longe de cumprir os pré-requisitos da ética libertária para aquisição de propriedade. Embora a arqueologia indique que este e outros relatos da Bíblia nunca ocorreram, mesmo assim eles serviram como mito fundador da nação. Diversas passagens da Bíblia indicam que os israelitas se sentiam culpados por roubar a terra dos canaanitas. Não obstante, por quatro séculos os conquistadores israelitas viveriam em um sistema com características libertárias, sob a autoridade de Juízes, que governariam baseados nas leis divinas, ou seja, uma teocracia. Em seu História dos Judeus, Paul Johnson destaca que,

                “A tradição israelita, já fortemente arraigada, de igualdade, de discussão comunitária, de debate e argumentação acrimoniosos, tornava-os hostis à ideia de um estado centralizado, com pesados impostos a pagar por um exército permanente Preferiam recrutar soldados nas tribos para servirem sem pagamento. … Os ‘juízes’ não eram governantes nacionais, que se sucediam no poder. Normalmente, cada um deles dirigia apena uma tribo, e alguns podem ter sido contemporâneos entre si.”

O Reino de Israel

Durante este período, os israelitas se envolveram em diversos conflitos com outros povos e conflitos internos entre as tribos de Israel, que só foram se unir diante da ameaça de um poderoso inimigo, os filisteus, que quase chegaram a dominar o Egito. Mesmo assim, eles somente aceitariam mudar do sistema descentralizado de Juízes para uma monarquia por intermédio da antiga instituição da profecia. Johnson relata: “[O profeta] Samuel relembrou ao povo que eles nunca tinham tido um rei – uma função dos profetas era transmitir a história ao povo – e que, sendo uma teocracia, Israel não poderia escolher um rei sem rejeitar o governo de Deus e assim pecar.” E a profecia de Samuel foi um preciso e verdadeiro alerta libertário:

               “Isto é o que o rei que reinará sobre vocês reivindicará como seu direito: ele tomará os filhos de vocês para servi-lo em seus carros de guerra e em sua cavalaria, e para correr à frente dos seus carros de guerra. … Ele os fará arar as terras dele, fazer a colheita, e fabricar armas de guerra e equipamentos para os seus carros de guerra. … Tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais, e o dará aos criados dele. Tomará um décimo dos cereais e da colheita das uvas e o dará a seus oficiais e a seus criados. Também tomará de vocês para seu uso particular os servos e as servas, o melhor do gado e dos jumentos. E tomará de vocês um décimo dos rebanhos, e vocês mesmos se tornarão escravos dele. Naquele dia, vocês clamarão por causa do rei que vocês mesmos escolheram, e o Senhor não os ouvirá.” (1 SAMUEL 8:11-18)

O primeiro rei foi um fracasso. Saul e seu filho Jônatas são derrotados e mortos pelos filisteus. “Davi então se torna rei de Judá, e após o assassinato de Ichbal, o sucessor de Saul no reino de Israel, os anciãos oferecem a Davi o trono. Após tomar Jerusalém dos jebusistas, coisa que os israelitas não haviam sido capazes de fazer em 200 anos, uniu o norte e o sul e a tornou a capital nacional e religiosa de Israel.” Tem-se início a Era de Ouro de Israel, com o domínio sobre a terra que fora prometida a descendência de Abraão. Esta era, que é usada como modelo pelos sionistas modernos em sua tentativa reconstruir Israel, durou apenas duas gerações. Davi foi sucedido por Salomão, que foi sucedido por Roboão, que “não conseguiu manter os reinos unidos, e o norte se separou do sul. … numa idade de impérios em ascensão – o babilônio seguido pelo assírio – esses pequenos reinos, Judá ao sul, e Israel ao norte, seguiram separados para o seu destino.” Mesmo se considerarmos que os israelitas habitantes do reino unificado fossem todos descendentes de Abraão, teriam os judeus modernos mantido essa hereditariedade ao não se casarem com estrangeiros? Essa teoria sionista já cai por terra logo com Salomão, que “amou muitas mulheres estrangeiras, além da filha de Faraó: moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hititas. … Casou com setecentas princesas e trezentas concubinas”. (1 REIS 11:1-3)

Primeiras diásporas

Estes reinos divididos de raças misturadas não puderam resistir a expansão do império assírio; Sargon II destruiu o reino setentrional, removendo toda a elite e enviando colonos, naquilo que seria considerada a Primeira Diáspora, quando também 10 tribos israelitas desapareceram para sempre. No entanto, conforme Sargon II relata nos Anais de Khorsabad, ele levou consigo apenas 27.290 das pessoas que ali habitavam. Na Samaria, permaneceram camponeses e artesãos israelitas que se casaram com os novos colonos. Uma Segunda Diáspora ocorreu 135 anos depois, após a queda do império assírio e a ascensão da Babilônia como a nova potência. O reino de Judá foi derrotado, Jerusalém foi destruída e israelitas voltaram a ser exilados; mas, novamente, as pessoas pobres permaneceram e algumas cidades, como Gibeão, Mizpah e Betel não foram tocadas. Foi no exílio, privados de um estado, que as práticas judaicas mais se desenvolveram, também como forma de distingui-los dos pagãos que os rodeavam. Jeremias, o primeiro judeu, dizia que “a destruição do reino não importava. Israel ainda era o povo eleito por Deus. Podia executar a missão que lhe fora atribuída por Deus tão bem no exílio e na dispersão quanto dentro dos limites de sua pequena nação-estado.” Quando a aliança de persas e medos liderada por Ciro sucedeu o império babilônio, os judeus exilados puderam retornar, mas a maioria escolheu permanecer na Babilônia. Os que preferiram voltar passaram pelas mesmas dificuldades que passariam os sionistas do século XX. Johnson explica que

                 “Apesar da ordem e do apoio de Ciro, o primeiro regresso em 538 a.C. … foi um fracasso, pois os judeus pobres, que haviam sido deixados para trás, os am ha-aretz, resistiram a ele, e em conjunto com os samaritanos, os edomitas e os árabes impediram os colonos de construir muralhas. … após 4 grandes esforços, foi só 93 anos depois, com Neemias em 445 a.C., que a colônia conseguiu se estabilizar e Jerusalém começou a ser reconstruída, não sem a resistência de árabes, amonitas e outros residentes locais: os judeus tinham que ir trabalhar na edificação das muralhas com suas espadas na cinta.”

Os judeus viveriam em paz sob os persas, que permitiam livre prática religiosa em todo seu império, até que ele foi destruído por Alexandre, o Grande em 332 a.C. As conquistas macedônias eram acompanhadas da helenização, que afetou assustadoramente a cultura judaica, gerando uma disputa entre judeus reformistas e rigoristas que culminou com revoltas de 166-152 a.C. e a expulsão dos gregos – o que não eliminou o helenismo, mas apenas o politeísmo. O poderio grego seria substituído pelo romano, pressagiando novamente uma conjuntura dos sionistas modernos. Segundo Johnson:

                      “Aliando-se ao império romano em ascensão, os asmoneus assumiram o poder. Eles eram como os futuros sionistas, e se viram imbuídos da tarefa de reviver o Livro de Josué e reconquistar toda a Palestina para o povo eleito. Seus exércitos destruíram cidades e massacraram populações urbanas cujo único crime consistia em serem de língua grega. A província de Idumeia foi conquistada e os habitantes de suas duas principais cidades, Adora e Marisa, foram forçados a converter-se ao judaísmo ou mortos, se se recusassem. … No final, os governantes asmoneus se tornaram tiranos que assassinaram milhares de judeus devotos que se opuseram a eles. … Foi se aproveitando de divisões internas deste reino despótico sanguinário que Roma tornou a Judéia um estado-cliente em 63 a.C. e foi sob Roma, com o reinado de Herodes, o Grande, que Israel viveu um novo apogeu.”

Novamente observamos um domínio territorial agressor sem qualquer tipo de legitimidade libertária. Israel viveria sua época de maior esplendor, com a construção do segundo templo, de palácios, fortalezas, o Túmulo dos Patriarcas em Hebron, portos, infraestrutura e fundação de novas cidades. Todavia, os judeus se dividiam em diversas seitas como saduceus, fariseus, zelotas e essênios. Uma comunidade essênia, os batistas, estava se desenvolvendo em uma seita universalista que internalizaria o helenismo e predominaria sobre todas as outras, o Cristianismo. Mas foram os zelotas que lideraram a primeira revolta contra Roma que resultou na tomada de Jerusalém e a destruição do templo que nunca mais foi reconstruído e terminou com a tomada da fortaleza de Massada em 74. No entanto, as tensões irreconciliáveis entre o judaísmo e a cultura grega continuaram, até que 60 anos depois outra grande revolta contra Roma eclode. Neste ponto, os judeus consistiam 10% da população do Império Romano e liderados pelo príncipe Simão bar Koziva, que o rabino mais erudito da época, Akiva bem José, reconheceu como Messias e o renomeou Barcoquebas. Os judeus impuseram uma resistência feroz, infligindo pesadas perdas aos romanos, que precisaram deslocar nada menos que 12 legiões para finalmente derrota-los em 135, e os vencedores passaram a chamar a região de Síria Palestina. Seria outro Messias judeu, predito principalmente pelo profeta Isaías, Jesus Cristo, que prevaleceria sobre Roma em 313. Mas essas duas derrotas puseram um fim na história estatal judaica na Antiguidade, e é baseando-se neste evento que os sionistas políticos primeiro reivindicariam o território para o povo judeu, que teria sido expulso à força pelos romanos e teria o direito legítimo de retornar dezessete séculos depois. Destarte, existe alguma justificativa libertária para esta reivindicação? O povo judeu seria o proprietário legítimo da Palestina? E, ainda mais importante, existe um “povo judeu”?

Expulsão?

Se um grupo de pessoas é coercitivamente expulso de sua propriedade, ele continua sendo o proprietário legítimo e tem o direito de retornar e retomar a área. Este direito pode ser passado para seus descendentes, e a ilegitimidade dos ocupantes ilegais também é passada para os descendentes deles ou aos ocupantes posteriores. Como vimos acima, a propriedade de Israel nunca foi legitimamente adquirida, e sim através de conquista agressiva de povos como os cananeus e idumeus. No entanto, pode-se alegar que os judeus possuem uma reivindicação melhor do que qualquer outra, pois cananeus e idumeus não existem mais, e os judeus alegadamente se mantiveram como um povo até hoje. O primeiro ponto a observar é que nunca houve esta expulsão. Quando Roma suprimiu a Revolta de Barcoquebas, centenas de milhares de judeus foram mortos e escravizados, mas apenas uma elite governante e sacerdotal foi forçada a deixar a região. O Império Romano não expulsava as populações das regiões conquistadas. A Palestina continuou sendo ocupada majoritariamente por judeus, que logo experimentaram uma “idade de ouro” sob a liderança de Yehuda HaNasi (135-217), um rabino compilador da Mishná e príncipe que tinha bom relacionamento com os imperadores romanos. Então o que explica a presença de judeus espalhados pelo mundo? Não foram eles exilados pelos romanos? Na verdade, antes das revoltas contra Roma, os judeus já estavam espalhados, como Johnson relata:

                     “O geógrafo romano Strabão disse que os judeus eram um poder em todo o mundo habitado. Havia milhões deles apenas no Egito. Em Alexandria, talvez a maior cidade do mundo depois de Roma, formavam uma maioria em dois dos cinco quarteirões. Eram numerosos em Cirene e Berenice, em Pérgamo, Mileto, Sarsis, na Apamea frigia, em Chipre, em Antióquia, em Damasco e Efeso, e nas duas margens do Mar Negro. Tinham estado em Roma por 200 anos, e formavam agora uma colônia substancial ali; e, de Roma, tinham-se espalhado por toda a Itália urbana, e, depois, até a Gália e a Espanha e, através do mar, até o noroeste da África.”

Proselitismo judaico

No ano 59 a.C. Cícero já se queixava do grande número de judeus em Roma. Eles também estavam presentes no país dos partas, à leste. Isso se devia a duas principais razões. A primeira é a imigração. Do mesmo modo que hoje em dia milhões de pessoas imigram para outros países em busca de melhores oportunidades, muitos judeus se mudaram de Israel para outras partes do mundo antigo, principalmente para as grandes cidades – essa tendência urbana judaica prevaleceu por todos os tempos. A segunda é a conversão. A ideia do monoteísmo ético era muito sedutora para os pagãos, o que dava força ao proselitismo judaico. A Septuaginta, a tradução da Torá para o grego, deu ainda mais impulso as conversões. Nos primeiros séculos de nossa era, surgiu um concorrente no mercado monoteísta, o Cristianismo, mas como ele era proibido e perseguido no Império Romano, o judaísmo tinha vantagem. Sendo uma religião reconhecida legalmente pela lei romana, o Norte da África e todo o mediterrâneo experimentaram uma conversão em massa ao judaísmo. Ocorriam conversões entre todas as classes sociais, inclusive entidades políticas foram convertidas, como reino de Adiabena, atual norte do Iraque. O termo judeu deixou de significar “habitante da Judeia” e passou a designar todos os convertidos ao judaísmo e seus descendentes. Estes fatos refutam a alegação sionista do exílio forçado de um povo, tanto pelo lado de não ter havido uma expulsão quanto pelo lado de os judeus não constituírem um povo, mas uma religião. De fato, conversões em massa trouxeram DNA que não fazia parte do pool genético original na terra de Abraão. Orígenes de Alexandria, o teólogo erudito cristão que viveu nesta época constatou que “o nome ioudaios não é o nome de uma etnia, mas de uma escolha (de modo de vida).”

Quando o crescimento do Cristianismo se tornou incontrolável e este ascendeu a religião oficial do Império, o judaísmo foi jogado para a marginalidade. Outro fator que ajudou na redução do número de judeus foram suas exigências mais excessivas – como a circuncisão e as restrições alimentares – e eles foram buscar adeptos em locais onde o monoteísmo Cristão não havia chegado. Muitos na península arábica adotaram a religião judaica, incluindo um poderoso reino, Himiar, atual Iêmen. Alguns desses judeus se desenvolveram em outra seita que seguiria um bem sucedido rumo separado, o islamismo, que dominaria grande parte do mundo e jogaria o judaísmo para um módico terceiro lugar em adeptos de religiões monoteístas. Durante o domínio bizantino, numerosas tribos berberes adotaram o judaísmo, que perdurou até a violenta conquista islâmica em 694 com a derrota da rainha judia Kahina. O judaísmo ainda seria a religião de um vasto império por volta do ano 800 até sua destruição em 1016, a Khazária, cuja extensão, de acordo com Sholomon Sand, em A invenção do povo judeu, “era de longe a mais vasta e mais importante que aquela de todos os reinos existentes no país da Judeia …. e as fontes externas disponíveis sobre sua história são bem mais variadas que aquelas relativas ao reino de Davi ou de Salomão.” Mas fora estes períodos, os judeus viveriam em reinos e estados dominados por outras religiões.

Portanto, falar em “povo judeu” faz tanto sentido quanto falar em “povo Cristão” ou “povo maometano”. E os praticantes da religião judaica teriam tanto direito à Eretz Israel prometida a Abraão quanto os praticantes das duas maiores religiões abraâmicas – os cristãos e os muçulmanos –, ou seja, nenhum. Os sionistas podem alegar que o judaísmo teria mais direito a Sião por ter se mantido fiel às práticas religiosas dos patriarcas, enquanto as outras seitas se diferenciaram a ponto de se desassociarem de uma corrente religiosa contínua, mas isso está longe de ser verdade. O judaísmo rabínico, com a sinagoga como sua instituição normativa, se desenvolveu a partir da seita farisaica e é muito diferente da religião praticada no antigo Israel, que era centrada no templo e no sacrifício de animais. Se existisse um direito estabelecido por semelhança, a reinvindicação de propriedade mais legítima pertenceria aos caraítas, uma seita do judaísmo que não aceita nenhuma adição pós Moisés, como o Talmud e a Mishná. Além disso, islamitas e Cristãos postulam que são eles as correntes principais e que foram os outros que se desviaram dela, perdendo assim o direito a herança de Abraão. Por exemplo, Pedro, o primeiro a confessar a fé em Cristo, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel, e em Gálatas 3, 28-29, Paulo expande a herança abraâmica a qualquer um que aceite Jesus: “Já não se distinguem judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, pois com Cristo Jesus sois todos um só. E se pertenceis a Cristo, sois descendência de Abraão, herdeiros da promessa.” De fato, Cristãos e maometanos lutaram várias guerras para controlar a região, considerada sagrada também por eles. A Caverna dos Patriarcas serve como exemplo dessa disputa. Era um local de peregrinação e foi fortificada e ornamentada pelo rei judeu Herodes, foi transformada em basílica pelos bizantinos, alterada para uma mesquita pelos árabes, voltou a ser uma igreja quando tomada pelos cruzados, Saladino fez com que voltasse a ser uma mesquita, que foi ampliada pelos mamelucos, foi restaurada pelos otomanos, e após a Guerra dos Seis Dias e a ocupação da Cisjordânia passou a ser controlada pelo Estado de Israel. Após a compra de Abraão, o domínio através da força sempre foi a regra na região, e nunca houve uma reivindicação legítima de propriedade sobre o território palestino que pudesse ser atribuída a um fictício povo judeu.

A justiça do sionismo

Apesar de não terem direito sobre a Palestina, os judeus deveriam poder ter um estado próprio. Claro que pela ética libertária nenhum estado tem o direito de existir, mas eles existem em 100% das terras do mundo e um grupo de pessoas que queria se separar dos estados existentes e formar sua própria entidade política autônoma deve ter o direito a secessão. Se esse grupo de pessoas estiver espalhado pelo mundo, eles podem se mudar para um território e ali concentrados demandar seu direito a secessão. E este era o justo anseio sionista, que surgiu em uma época em que as identidades dos estados-nação modernos estavam se formando e ganhou força com o tratamento que os diferentes recebiam. Após perderem seus estados e perderem a batalha de conversões, os judeus se fecharam em si próprios e passaram a viver como uma minoria, geralmente oprimida por seu entorno gentio.

Durante a Idade Média, na Cristandade europeia, os judeus eram considerados um problema de ordem social contaminador da verdade religiosa. Em uma época de misticismo, judeus sofriam muitas injustiças, como acusações de libelos de sangue que geralmente terminavam em massacres. Judeus também prosperariam financeiramente com a prática da usura, que era proibida para os cristãos – e também para os judeus, mas judeus poderiam emprestar dinheiro à juros para não-judeus. Muitas vezes este enriquecimento despertava ressentimentos que podiam resultar na expropriação e expulsão dos judeus. Apesar da impressão inversa atual, na verdade os judeus viviam melhor sob o islamismo do que sob o Cristianismo; geralmente os não-muçulmanos tinham oportunidades limitadas e precisavam pagar um imposto, mas eram menos maltratados. Maimônides, o maior intelectual judeu da história, que chegou a ser considerado um “segundo Moisés”, escrevia em árabe e viveu sob califados islâmicos, primeiro de Al-Andaluz e, depois que fanáticos berberes tomaram o poder e impuseram “conversão ou exílio”, viveu sob os califados xiita e depois sunita que controlaram o Egito em seu tempo de vida. Os judeus – além do hebraico que era usado somente para fins litúrgicos – desenvolveram seu próprio idioma, o iídiche, e viviam separados do resto da população, geralmente em guetos que gozavam de certa autonomia dos poderes dominantes. Antes de imigrar para os EUA, David Rothbard, o pai de Murray Rothbard, vivia em um gueto na Polônia e nem sabia falar polonês, apenas iídiche.

Após a Revolução Francesa e o declínio do poder religioso, os judeus – que também passaram a abandonar a religião – começaram a vislumbrar o fim da condição de cidadãos de segunda classe e o início de uma igualdade perante a lei. Isto se mostrou uma ilusão a luz dos grandes pogroms russos de 1881-2 e do caso Dreyfus de 1894 na iluminista França. Foi durante sua cobertura da injustiça sofrida pelo capitão judeu Alfred Dreyfus e influenciado pelo romance Daniel Deronda, que o jornalista judeu austro-húngaro Theodor Herzl teve a inspiração para dar início ao movimento sionista moderno. Em 1885 ele publicou o livro Der Judenstaat [O Estado judeu], propondo que os judeus do mundo se agrupassem em um território e estabelecessem um estado próprio, onde não seriam mais uma minoria oprimida – uma demanda legítima; ele escreveu: “Se, pelo menos, pudessem nos deixar em paz … Mas eu não acredito que o farão.” Herzl sugeriu a formação de um congresso sionista para debater ações práticas para a criação de um estado judeu, ideia esta que foi logo posta em prática com a realização do primeiro congresso sionista em 1897, na Suíça. A primeira dificuldade foi especificar quem seria judeu: seriam os praticantes do judaísmo?, seriam uma etnia? O próprio Herzl ficou espantado diante da sugestão que judeus seriam uma raça quando o escritor judeo-britânico Israel Zangwill, conhecido por sua feiura, considerou que ambos tinham a mesma origem. Mas essa ideia etnocentrista foi avançada por outros sionistas, como Max Nordau, que acreditava que “os judeus constituíam claramente um povo de origem biológica homogênea”.  O quesito religioso também não era satisfatório, dada a grande quantidade de judeus ateus ou não praticantes da religião que engrossavam as fileiras do sionismo. Mas para o movimento avançar era preciso criar uma identidade comum, e essa tarefa foi desempenhada por historiadores proto-sionistas e sionistas.

A invenção do povo judeu

Quando em 1820 o historiador judeo-alemão Isaak Markus Jost publicou o primeiro volume de um total de nove de sua História dos israelitas do tempo dos macabeus aos nossos dias, ele considerou que “os judeus possuíam talvez uma origem comum, mas as comunidades judaicas não eram membros separados de um povo específico. Sua cultura e seu modo de vida variavam totalmente segundo os lugares, e apenas uma crença particular em Deus os reunia e vinculava. Não existia supraentidade judaica política que separasse os judeus dos não judeus”. (SAND, 2008). Mas foi um crítico da abordagem de Jost, Heinrich Graetz com o seu A história dos judeus dos tempos antigos ao presente, cujos primeiros volumes foram publicados em 1850, que inventou o conceito do “povo” etnorreligioso judeu, que possuía uma existência contínua confirmada pelos relatos bíblicos até a vida contemporânea no exílio. Graetz não era sionista, não defendia a criação de uma pátria judaica, mas incluiu a narrativa do exílio em sua obra. A reivindicação sionista do retorno à Israel de um povo exilado foi baseada em um mito criado e espalhado dentro do Cristianismo. O exílio teria sido uma punição divina aos judeus que ao invés de aceitarem a graça redentora do Messias enviado – de acordo com as profecias – por Deus o crucificaram. Em 1862, com a publicação da obra Roma e Jerusalém por Moses Hess, a ideia sionista de Theodor Herzl foi antecipada. Hess foi o precursor tanto do sionismo quanto do comunismo, como Douglas North notou em O Marx que ninguém conhece. Inspirado pelas pseudociências racistas que proliferavam em sua época de ascensão do nacionalismo, Hess concebeu os judeus como uma raça, que preserva sua pureza desde o Egito Antigo graças a sua fé, e estava destinada a imigrar de volta à Terra Santa – essa concepção também seria a base da Lei de Cidadania do Reich de 14 de novembro de 1935, onde a burocracia nazista elaborou vinte e sete decretos-leis tratando da questão racial.

Os historiadores Simon Doubnov e Salo Baron estabeleceram “um discurso protonacional específico e definido: a história judaica era a de um povo que nasceu nômade em uma época muito distante e continuou a existir, de maneira milagrosa e misteriosa, ao longo da história.” (SAND, 2008) E os historiadores Yitzhak Baer e Ben-Zion Dinur consolidaram uma historiografia sionista, de uma continuidade homogênea do “povo de Israel”, sempre desejoso de retornar a pátria natal. Na ausência de indícios históricos e arqueológicos de que Roma teria expulsado os judeus, Dinur alterou a narrativa do exílio: os judeus teriam sido expulsos da Palestina após a conquista islâmica – uma data mais recente, século VII, que melhoraria a reivindicação do povo judeu à terra de Israel. Porém, esta expulsão também nunca ocorreu, como explicado adiante.

No começo do movimento sionista, a localização do novo estado judeu não estava definida; Argentina e Uganda foram alguns dos locais propostos, e, de fato, o retorno à Sião era proibido pelos mandamentos rabínicos e só deveria ocorrer no Juízo Final e através do Messias. No entanto, a Palestina foi o único local que emplacou, e os sionistas começaram a se mudar para lá e incentivar a imigração em massa dos judeus. Estava então criado o mito de que os judeus constituíam um povo, expulso ilegitimamente de sua terra, que possuía, portanto, o direito de retornar. Se a Palestina fosse “uma terra sem povo para um povo sem terra”, uma (re)apropriação original sionista seria legítima, mas o problema é que ela não era.

O problema árabe

Quando os primeiros sionistas chegaram na Palestina encontraram uma terra vastamente ocupada. A partir de 1891, o sionista espiritual Ahad Ha-‘Am destacou que “havia pouco solo não cultivado na Palestina, exceto colinas pedregosas e dunas de areia”, e advertiu que “os colonos judeus não devem, sob nenhuma circunstância, despertar a ira dos nativos por ações feias; devem encontrá-los antes no espírito amigável do respeito.” Os árabes que ali se encontravam eram em grande parte os povos locais originários, que não haviam sido expulsos nem pelos romanos no século II e nem pelos maometanos no século VII. Na verdade, a população judaense até colaborou com os conquistadores islamitas para se livrarem da opressão muito maior que sofriam dos cristãos bizantinos. Sob o Califado Omíada, para não pagar a jizia, o imposto para minorias religiosas, muitos judeus se converteram ao islamismo – uma religião próxima que se originou como uma vertente do judaísmo. O sionista marxista Dov Ber Borochov considerava os palestinos como parte da raça judaica. De fato, a genética parece comprovar essa ascendência, sugerindo que os palestinos são os mais geneticamente próximos dos antigos israelitas. Os dois principais discípulos de Borochov, David Ben-Gurion e Yitzhak Ben Zvi – futuros fundadores do Estado de Israel – acreditavam que árabes palestinos iriam “voltar ao judaísmo” quando se deparassem com sua “cultura superior”, sendo assim integrados à nova nação. No entanto, os palestinos – muçulmanos e cristão – se mostraram muito mais apegados as suas tradições do que a esquerda sionista imaginava. Finalmente, com a revolta árabe de 1929 Ben-Gurion abandonou sua expectativa de integração e entrou em uma disputa territorial com os palestinos.

De início, os imigrantes judeus vindos da Europa compravam as terras dos árabes, que passaram a cobrar cada vez mais caro por elas. A aquisição majoritariamente legítima de terras foi impulsionada pelo barão Edmond de Rothschild, que em 1924 adquiriu 125.000 acres, onde implantou diversas comunidades e ajudou a promover a iniciativa socialista do kibutz. Mas esta via legítima estava se mostrando muito ineficiente para a pretensão sionista de formar um estado judeu, pretensão está que passou a ser cada vez mais conhecida pelos árabes, suscitando conflitos inevitáveis. Criada em 1920, a Haganá – um grupo paramilitar que sob o comando de Ben-Gurion se transformaria em um verdadeiro exército e daria origem as Forças de Defesa de Israel – passou a proteger os sionistas e intimidar os palestinos. Ao lado de duas outras milícias, o Irgun e a Gangue Stern, a Haganá empreenderia uma campanha de terror, a Nakba, visando a limpeza étnica dos palestinos da Terra Prometida. O mais notório ato dessa campanha foi o ataque ao vilarejo Deir Yassin, onde mais de uma centena de civis desarmados, incluindo crianças, mulheres e idosos, foram massacrados pelos militares sionistas. Com a notícia da bárbara carnificina se espalhando, o objetivo foi alcançado e 750.000 palestinos fugiram aterrorizados de suas casas, cidades e fazendas.

Os sionistas também foram os inventores do terrorismo moderno, e muitos ataques terroristas foram executados contra o Império Britânico que dominavam a Palestina. O maior de todos estes atos foi o atentado à bomba ao Hotel Rei Davi pelo Irgun, com a anuência da Haganá, que fez 91 vítimas fatais, sendo 28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 outros, e feriu gravemente outras 45 pessoas. O terrorismo sionista também alcançou seu objetivo, e os britânicos entregaram o mandato da Palestina à ONU, que logo recomendaria a criação do Estado de Israel. Além de Ben-Gurion, muitos outros primeiro-ministros de Israel vieram dessas organizações terroristas, como Yitzhak Shamir, Menachem Begin, Yitzhak Rabin e Yigal Allon; todos governantes apropriados de um país formado através do terrorismo e do roubo de propriedade. A partilha da ONU também não possui nenhuma legitimidade. Mesmo que não tivesse sido uma votação fraudada presidida pelo diplomata pro-sionismo brasileiro Oswaldo Aranha, nenhum órgão supranacional burocrático possui o direito de determinar fronteiras e formar países, sem a anuência das populações locais – que em 1948 era formada por menos de 30% de judeus que receberam com 54% do território. Esta decisão da ONU foi claramente um ato agressivo e logo que foi concluída a contagem dos votos, os árabes se uniram em uma liga e declararam uma guerra defensiva. Ben-Gurion e outros líderes sionistas nunca tiveram a intenção de respeitar essas fronteiras determinadas pela ONU, que foram expandidas com a vitória nesta guerra e em outras guerras subsequentes e continuam sendo expandidas até hoje.

Os palestinos expulsos de suas propriedades emigraram para diversas partes do mundo porém, nem todos os árabes fugiram da violência sionista; muitos permaneceram dentro dos limites do atual Israel e muitos se refugiaram na Faixa de Gaza e nas Cisjordânia, que são territórios sob o domínio de Israel, o que transformou Israel em um estado de apartheid, onde os palestinos de Israel são cidadãos de segunda classe. A intelectualidade moderna considera que a panaceia seria transformar Israel em uma democracia, mas os libertários sabem que democracia não é nada além de uma tirania da maioria. Israel é constituído como um Estado Judeu, e nem poderia ser diferente, pois isso é a essência do sionismo. Toda a ideia sionista se resumia em criar um estado onde os judeus fossem a maioria, e não uma minoria que pudesse ser – e a história mostrou que fatalmente seria – oprimida pela maioria. A democracia seria a ruína dos judeus, como de fato constatou Yasser Arafat quando disse que a sua melhor arma era o ventre da mulher árabe. A taxa de natalidade entre os palestinos é muito maior que entre os israelenses seculares, o que em poucas gerações podem tornar os judeus uma minoria em Israel, passível de ser oprimida; em uma democracia, o ventre é realmente uma arma. Ao analisar os regimes de apartheid da África do Sul e de Israel, Murray Rothbard indicou uma solução diferente: substituir o apartheid parcial pelo apartheid total, ou a proposta de dois estados. No entanto, como resumiu o eminente professor de política internacional John Mearsheimer, tanto a solução de dois estados, como a democracia e o apartheid foram descartadas pelo atual regime de Israel, que está conduzindo uma limpeza étnica brutal na Faixa de Gaza e assassinatos e desapropriações habituais na Cisjordânia – além das dezenas de milhares de  mortos pelas bombas, outros milhares de palestinos já morreram por doenças e a fome e mais de 1 milhão também podem morrer.

Libertário sionista?

Diante dos fatos narrados acima, é realmente estarrecedor se deparar com qualquer libertário que apoie este projeto sionista de pura conquista agressiva de território. Ainda mais lastimável é ver um libertário do calibre de Walter Block, com uma vida repleta de grandes contribuições a defesa de uma sociedade livre, destruir todo seu legado ao defender veementemente uma gangue de ladrões assassinos. Block sempre contou a história de que quando fazia parte do círculo de Ayn Rand em Nova York, conheceu Murray Rothbard e em poucos minutos de conversa foi convertido para o anarcocapitalismo. No entanto, agora foi revelado que Block nunca realmente se tornou um rothbardiano, e continuou sendo um randiano coletivista genocida. Apesar do histórico evidente de que sionistas europeus – os verdadeiros antissemitas – são invasores agressivos da Palestina, Block e Milei insistem em dizer que Israel está apenas se defendendo, sem nenhum excesso, e que, ao menos para Block, todas as milhares de mortes de civis do conflito em andamento são culpa exclusiva do Hamas; como se a guerra tivesse tido seu início em 7 de outubro de 2023. Como se fosse possível que um ataque sinistro desses pudesse ter sido levado a cabo por pessoas que não tivessem sofrido nenhuma agressão prévia. A maldade dos terroristas do Hamas é uma consequência da maldade, do terrorismo, das injustiças e da opressão infligida ao povo palestino há décadas pelos sionistas. Uma demonstração da fonte do mal pode ser vista na data do documentário Nascido em Gaza, filmado durante a ofensiva das FDI à Faixa de Gaza, em 2014, um dos muitos ataques de Israel contra palestinos. O documentário mostra a tragédia causada na vida de 10 crianças pelas bombas israelenses. O mesmo ocorreu com milhares de crianças que em 2023 teriam a idade dos jovens que cometeram atos atrozes contra israelenses no 7/10.

Milei tem a pachorra de dizer que Israel é o defensor dos valores ocidentais no Oriente Médio, e por isso deve ser apoiado à qualquer custo, mas roubo de terras e genocídio jamais foram valores ocidentais – assim como democracia, que sempre foi uma ideia desprezada, dos gregos aos pais fundadores americanos, e na verdade é um elemento de de-civilização. (Além disso, Sammy Samooha classificou Israel muito abaixo na hierarquia dos regimes democráticos.) Em primeiro lugar, os valores ocidentais não são judaicos, mas católicos. O que é o tão falado “Ocidente”? Em The Birth of the West, Paul Collins aponta que o Ocidente nasceu quando o Papa coroou Oto I imperador do Sacro Império Romano Germânico e as convicções da Igreja Católica Apostólica Romana dominaram a cena. Como visto acima, os judeus seriam uma minoria oprimida no Ocidente Católico, e seus valores insignificantes na constituição da cultura ocidental. O mote modernista “valores judaico-cristãos” teria soado absurdo para o homem que viveu na era medieval, o auge do Ocidente, a época mais libertária da história, ou mesmo para o homem do século XIX. Porém, nem sequer os valores judaicos são defendidos por Israel. Se Israel fosse realmente um Estado Judeu, ele incorporaria os preceitos do judaísmo, que considera a vida humana um valor supremo. A vida humana é sagrada pois os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus. Como Paul Johnson explica:

                          “Os sábios decidiram que um homem não tinha o direito de salvar sua vida causando a morte de outro. … No que dizia respeito à vida humana, os fatores quantitativos não tinham significação. Um indivíduo, se inocente, não podia ser sacrificado pelas vidas de um grupo. Era um princípio importante da Mishná que cada homem é um símbolo de toda a humanidade, e quem quer que destrói um homem destrói, num sentido, o princípio da vida, exatamente como, se salva um homem, resgata a humanidade. O rabi Akiva parece ter pensado que matar constituía “renunciar à semelhança”, isto é, deixar a raça humana. Filo classificava o assassinato como o maior dos sacrilégios, assim como, de longe, o ato criminoso mais sério.”

Como conciliar a importância dada a vida pelo judaísmo com a carnificina causada na Faixa de Gaza pelas forças armadas israelenses? É impossível. No entanto, Israel já foi melhor do que isso. Após a criminosa fundação de Israel, a vida humana voltou a ser valorizada a ponto de haver uma grande discussão nacional para decidir se até mesmo o arquiteto do Holocausto, Adolf Eichmann, seria punido com a pena de morte. Para capturar Eichmann, os israelenses não bombardearam a Argentina indiscriminadamente, mas entraram lá secretamente e o sequestraram sem que nenhum inocente fosse ferido. As operações contra terroristas também eram muito diferentes dos bombardeios sobre áreas residenciais praticados pelas IDF posteriormente, e os israelenses realmente miravam nos combatentes e minimizavam os danos a civis. O resgate cinematográfico de 1976 no aeroporto de Entebbe de 102 judeus sequestrados por palestinos, onde apenas 2 reféns foram mortos na troca de tiros é um dos melhores exemplos da disposição e engenhosidade israelense em punir culpados e preservar a vida de inocentes. Na Operação Entebbe, todos os 7 terroristas e mais 45 soldados ugandenses foram mortos, e apenas um soldado israelense morreu, Yonatan Netanyahu, cujo irmão mais novo, Benjamin Netanyahu, ficaria famoso e se tornaria o primeiro-ministro de Israel com mais tempo no poder. Yonatan havia participado de outras operações de precisão do tipo, como a Operação Primavera da Juventude em 1973, que invadiu o Líbano e matou os líderes terroristas do Massacre de Munique. Hoje em dia, seu irmão Benjamin, em nome retaliar um ataque e de libertar cerca de 200 reféns do 7/10, já matou dezenas de milhares de civis, feriu e mutilou outras dezenas de milhares, desalojou milhões e deixou em escombros cidades inteiras. Que diferença. E Walter Block se orgulha que este criminoso de guerra tenha escrito o prefácio de seu livro!

Block constrói seu caso a favor de Israel a partir de uma perspectiva liberal clássica, alegando que é necessário sair de sua posição anarcocapitalista para evitar o sectarismo, ou seja, para não se limitar a dizer que abolir o estado seja o único caminho. O objetivista que Block arrumou para ser o coautor de seu livro passou por maus bocados para tentar explicar essa posição contraditória. Ela não procede pois libertários não são contra o estado, eles são contra a agressão. A ênfase dada ao estado vem do fato de que ele é, disparado, o maior agressor de propriedade que já existiu, mas libertários também se opõe as agressões praticadas por indivíduos e grupos privados. Portanto, anarcocapitalistas não precisam deixar de lado sua defesa da abolição do estado para analisar ações de estados e propor alternativas que não sejam o seu fim. Porém, é importante que os anarcocapitalistas sempre apontem que a solução ideal é de fato a abolição do estado.

Anarcosionismo

Durante séculos, os judeus têm suportado sofrimentos atrozes e discriminação legal em todo o mundo, como, por exemplo, os cristãos sofreram e ainda sofrem quando dominados por outros grupos. O projeto sionista surgiu como uma resposta a isso. Ele perdeu muito de seu sentido com a judiaria americana, que encontrou um porto seguro em um país onde recebeu os mesmos direitos dos outros cidadãos e pôde prosperar. O sionismo teve pouca aceitação entre os judeus e só ganhou força e emplacou após o Holocausto. A legitimidade do movimento sionista foi irremediavelmente perdida quando eles pararam de comprar as propriedades dos palestinos e passaram a conquista-las à força. Mas o erro fatal dos judeus sionistas foi terem novamente ignorado o aviso profético de Samuel e aspirarem por um estado. Foi rejeitarem o alerta do rabi Johanan ben Zakkai, “o segundo em autoridade no Sinédrio, que se opusera a revolta [contra Roma] e falara em nome do velho elemento no judaísmo que acreditava que Deus e a fé eram mais bem servidos sem a carga e a corrupção do estado.” Foi desejarem um reestabelecimento do reino davídico e não da era dos Juízes. Foi ignorarem que a história dos judeus evidencia “um conflito inerente entre a religião e o estado de Israel”:

                “Quando os israelitas, e mais tarde os judeus, lograram um governo autônomo estabelecido e próspero, acharam extraordinariamente difícil manter a sua religião pura e sem corrupção. A decadência iniciou-se rapidamente depois da conquista de Josué; voltou a aparecer sob Salomão, e se repetiu tanto no reino setentrional como no meridional, especialmente sob reis ricos e poderosos e quando os tempos foram bons; exatamente o mesmo modelo retornaria novamente sob os asmodeus e sob potentados tais como Herodes, o Grande. Em tempos de governo autônomo e de prosperidade, os judeus sempre pareciam atraídos por religiões vizinhas, seja cananita, filistéia-fenícia ou grega. Apenas na adversidade, eles se apegaram resolutamente a seus princípios e desenvolveram seus poderes extraordinários de imaginação religiosa, sua originalidade, sua clareza e seu zelo. E possível que se dessem melhor sem um estado autônomo, que se inclinassem com mais facilidade a obedecer à lei e Deus quando incumbiam a outros os deveres e as tentações de governá-los. Jeremias foi o primeiro a perceber a possibilidade de que a impotência e a bondade estivessem de alguma forma ligadas, e que o governo estrangeiro podia ser preferível a governo autônomo. Ele chega quase à ideia de que o estado era inerentemente mau.

… assim como não haviam objetado aos persas, já que tendiam a aceitar os argumentos de Jeremias de que a religião e a devoção floresciam melhor quando cabia aos pagãos levar adiante o negócio corruptor do governo.”

Ao optarem por criar um estado, os sionistas políticos não se livraram da opressão, apenas trocaram de opressor; antes eram oprimidos por gentios, agora são oprimidos por outros judeus. A natureza do estado é a agressão, e qualquer estado será composto por explorados e exploradores. Durante a ditadura covid, Israel foi um dos países que mais tiranizou seus súditos com lockdowns, máscaras e vacinas obrigatórias. Israel usou seus cidadãos como cobaias de laboratório para a Pfizer, matando milhares de pessoas com as “vacinas” anti-covid. Tudo isso em uma clara violação do Código de Nuremberg, que foi elaborado após o Holocausto para prevenir que algo assim voltasse a acontecer. A tentativa sionista de livrar os judeus da opressão fracassou, e os libertários podem e devem apontar para sua falha fundamental: a agressão institucionalizada. E quem sabe surja um novo movimento sionista que realmente livre judeus da tirania e não tiranize outros grupos, o Anarcosionismo.

Mas os libertários também têm muito a aprender com os sionistas. Em algumas décadas eles conseguiram fazer o que alguns libertários estão tentando há um bom tempo: concentrar um número suficiente de libertários em um local, formar uma maioria e obter autonomia e independência. Já fazem 23 anos que o Free State Project tenta formar uma massa libertária eleitoralmente relevante em New Hampshire, mas sem sucesso até hoje. O Liberland está a menos tempo tentando colonizar e obter a autonomia de uma pequena ilha no Rio Danúbio entre a Croácia e a Sérvia, também ainda sem êxito até agora. O recente projeto Los Propietarios tenta formar uma comunidade de anarcocapitalistas na Argentina, algo parecido com o que já foi tentado 15 anos atrás por Doug Casey. Existem outros projetos como o Free Cities e o Seasteading, mas nada conseguiu chegar perto do feito sionista. Antes de Theodor Herzl, sionistas também fizeram tentativas que não deram em nada, como a de Mordecai Noah, que em 1825 planejou adquirir uma ilha no Rio Niagara para ser um lar autônomo dos judeus. Mas foi só 50 anos depois que, com um elevado poder organizacional, Herzl conseguiu engrenar um movimento que seria triunfante. Com um estilo solene ele conseguiu angariar o apoio de ricos e poderosos de sua época. Após sua morte, seu trabalho foi avançado por sionistas como Chaim Weizman, que fez com que Arthur Balfour, líder dos conservadores britânicos, Winston Churchill e Lloyd George se tornassem fortes defensores do sionismo. Um estudo aprofundado do movimento sionista pode ajudar libertários a criarem o seu Sião, pois como os judeus, tudo o que eles querem é serem deixados em paz.

1 COMENTÁRIO

  1. Talvez um dos melhores artigos que li do Fernando, diversos pontos levantados trazem uma perspectiva muito importante para tentarmos compreender desde todos os lados o(s) problema(s) atuais do oriente médio. Devo confessar que, mesmo em despeito de minha falta de conhecimento no assunto e admitindo o desprezo e ojeriza que tenho a diversos aspectos do universo árabe, alguns pontos levantados trazem uma reflexão importante para entendimento do lado palestino. Não consegui ainda ter uma opinião definitiva sobre o tema porque enxergo legitimidade em diversas reivindicações de propriedade e de afirmação exercidas pelos israelitas como nação, independentemente do problema levantado pela questão sionista e problemas vinculados ao estatismo. Pretendo estudar melhor a questão para quem sabe conseguir ter uma opinião mais clara, e em consonância com os valores libertários, e esse artigo certamente servirá para esse propósito.

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