7. Entre os Chipanzés e os Cupins
O problema com as metáforas consiste no fato de que são levadas a sério: sempre haverá alguém que comete o erro de extrapolar uma analogia para as demais características dos objetos comparados[1]. Neste capítulo, seremos mais tolos ainda: iremos emendar uma metáfora.
A difusão das ideias liberais no Brasil deve muito a um pequeno livro de Og Leme publicado na década de 1980, intitulado Entre os Cupins e os Homens[2]. Um testemunho da importância dessa obra é a frequência com a qual nos deparamos com pessoas, inspiradas pelo livro, que contrastam o ideal de uma sociedade de homens livres com o totalitarismo, no qual as pessoas viveriam como cupins que sacrificam seus interesses pela coletividade, através de organizações sociais hierarquizadas.
Embora a mensagem principal do livro seja correta[3] e exposta com brilhantismo, a metáfora utilizada por Leme reflete crenças ultrapassadas sobre as sociedades dos insetos gregários. Para o autor, os cupins, formigas, abelhas e vespas são biologicamente programados para o altruísmo e sacrificam seus interesses pelo bem coletivo: “São insetos de comportamento previsível, dispostos a permanente renúncia individual a favor da comunidade” (p. 18). As ações individuais, caracterizadas por uma divisão do trabalho geneticamente determinada, seriam apenas meios para um fim central.
A imagem de hordas de indivíduos conformistas e submissos a uma organização autoritária e rigidamente hierarquizada que informa a metáfora era de fato dominante quando o livro foi escrito. O próprio uso de termos como “abelha rainha”, “formigas operárias” e “castas de insetos” reforça essa visão hierárquica dos insetos, que persiste até hoje na cultura popular. De fato, desde os desenhos animados como FormiguinhaZ,Bee Movie ou Vida de Inseto até as temíveis espécies inimigas dos seres humanos na ficção científica, como os Wraiths de Stargate Atlantis e os Borgs de Jornadas nas Estrelas, somos assombrados com a opressão (e pretensa eficiência) dessa forma de organização social militarizada inspirada em insetos. Em contraste, apenas o genial Mandeville, muito tempo antes, na sua Fábula das Abelhas, utilizou uma colmeia como metáfora no sentido oposto. Sua colmeia era próspera a despeito (na verdade, por causa) da ausência de altruísmo imposto ou controle central. Essa prosperidade, por sua vez, se relaciona ao império da lei que substitui o poder arbitrário dos governantes: na colmeia mandevilliana, os insetos eram governados “… por reis, que não podiam errar / Pois seu poder era restrito por leis”.
Se levarmos em conta os avanços da Biologia e dos estudos interdisciplinares sobre sistemas complexos, veremos que a imagem de Mandeville é muito mais próxima da realidade: as sociedades de insetos são muito mais “liberais” do que se acreditava. Com efeito, tanto a crença sobre indivíduos altruístas quanto a ideia de estruturas hierárquicas nas colônias de insetos foram suficientemente refutadas pela ciência moderna, substituídas por estudos que explicam a emergência da complexidade a partir de ações descentralizadas guiadas por regras simples.
A biologia evolucionária de fato estilhaçou os sonhos do romantismo rousseauniano ao desbancar os pretensos exemplos de altruísmo na natureza: os indivíduos egoístas deixam mais descendentes. A hipótese de seleção de grupo, por sua vez, se revelou bastante implausível. Os poucos exemplos de aparente “altruísmo” na natureza que restaram – a seleção de parentesco – foram explicados por uma forma mais radical de “egoísmo”, operante no nível dos genes: a estratégia de sacrifício pelos outros por parte de um indivíduo só teria condições de se manter se for salvo um número maior de cópias do mesmo gene do “herói”[4].
O estudo moderno das sociedades de insetos, por outro lado, revela não um quadro de hierarquia e planejamento central, mas sim exemplos daquilo que Hayek denomina ordens espontâneas – estruturas organizadas que são frutos da ação, mas não da intenção dos indivíduos. Ordens espontâneas, para esse autor, podem atingir graus elevados de complexidade na presença de mecanismos de retroalimentação que possibilitam a coordenação das ações de indivíduos com capacidade cognitiva relativamente limitada e que operam segundo regras simples de ação.
Tomemos um exemplo, os cupins do gênero Macrotermes. Essas criaturas constroem cupinzeiros de vários metros de altura que contém sofisticadas estruturas arquitetômicas que funcionam como ar-condicionado para manter a umidade e temperatura dos jardins de fungos das câmaras interiores. Embora os cientistas estejam longe de compreender o fenômeno de forma satisfatória, estudos empíricos e modelos computacionais apontam justamente na direção aludida no parágrafo anterior.
Através de um mecanismo de coordenação conhecido em inglês como stigmergy, que denota a influência que uma ação exerce sobre as ações subsequentes, por meio da modificação no ambiente provocada pela primeira ação, causando reações em cadeia, podemos imaginar cada cupim seguindo uma regra simples: “Ande a esmo. Se encontrar um grão de areia, então o pegue e ande aleatoriamente até encontrar outro grão, depositando o primeiro junto a este.” Assim, sem que cada cupim siga uma planta ou mesmo tenha consciência da existência das demais, a interação entre eles gera a construção de pilhas que se transformam nas futuras colunas arqueadas do cupinzeiro[5].
Da mesma forma, como cupins e formigas conduzem a atividade de forrageamento? Cada inseto deixa uma trilha de feromônios pelo caminho que influencia a rota tomada pelos próximos passantes. Quanto mais forte o traço, maior a probabilidade de que será seguido no futuro. Ao mesmo tempo, já que o feromônio evapora, rotas mais longas tendem a se desfazer, o que garante que os indivíduos utilizem caminhos mais curtos. Esse mecanismo, aliás, inspirou o ant colony optimization, utilizado em computação.
Como esse, poderíamos listar dezenas de exemplos de auto-organização no mundo dos insetos gregários. Quando uma colmeia esfria, as abelhas batem as asas e esquentam a colônia, parando de se mexer quando esta esquenta. Neste caso, o termostato só funciona porque as abelhas têm sensibilidades diferentes a variações de temperatura. Se houvesse uniformidade, haveria reação excessiva e a colmeia esquentaria ou esfriaria demais[6]. Os formigueiros, por seu turno, tendem a maximizar a distância entre o cemitério, o berçário e o depósito de alimentos. Se módulos plásticos contendo parte da colônia forem realocados, depois de algum tempo essas áreas são transferidas de forma ótima novamente. E isso, ironiza Johnson[7], sem que haja um plano quinquenal de formigas stalinistas…
Se levarmos em conta o que revela o estudo dos insetos sociais, os cupins não funcionam então como metáfora adequada para sociedades opressoras. Se buscarmos inspiração na Sociobiologia, talvez o contraste mais adequado fosse entre os cupins e os chipanzés. Ao contrário dos cupins, é comum nos grupos de primatas observarmos relações sociais pautadas por violência política, como mostram aqueles documentários a respeito dos conchavos políticos efetuados pelo macho alfa.
Embora as sociedades de insetos sejam descentralizadas e não hierárquicas, será que a analogia entre o fenômeno de auto-organização nesse tipo de sociedade e nos mercados não envolve o erro aludido no primeiro parágrafo; qual seja, extrapolar indevidamente aspectos de uma metáfora? No próximo capítulo, argumentaremos que não: a moderna abordagem interdisciplinar sobre complexidade retoma aspectos fundamentais da explicação hayekiana sobre fenômenos complexos. Investigaremos adicionalmente as peculiaridades das ordens espontâneas nos mercados que as tornam tão difíceis de serem percebidas e apreciadas.
[1] Esse vício é particularmente presente na obra dos “gurus” da Administração de Empresas.
[2] Leme (1988)
[3] O único reparo às teses do autor se refere à negação da existência de uma natureza humana. Para uma análise da relação entre esse conceito e suas implicações para a Economia e Ciências Sociais em geral, veja os capítulos intitulados Espantalhus Oeconomicus e Autointeresse, Instituições e Utopia.
[4] Dawkins (2007).
[5] Esse mecanismo pode ser conferido pela simulação simples denominada Termites, no banco de modelos do software gratuito NetLogo. Consultar <http://ccl.northwestern.edu/netlogo/> Acesso em 2/11/2011.
[6] Miller e Page (2007).
[7] Ver Johnson (2003) Em um capítulo intitulado “O Mito da Abelha Rainha”, o autor reporta sua entrevista com a Deborah Gordon, a bióloga que conduziu o experimento mencionado.