No seguinte capítulo, tenho três objetivos. Primeiro, irei apresentar algumas teses que constituem o núcleo básico da teoria marxista da história. Afirmo que todas elas, em sua essência, estão inteiramente corretas. Em seguida, irei demonstrar como essas corretas teses marxistas foram derivadas de uma base completamente errônea. Por fim, quero demonstrar como a teoria austríaca, na tradição de Mises e Rothbard, pode fornecer uma explicação correta, embora categoricamente diferente, da validade destas teses marxistas.
Deixe-me começar com o núcleo básico do sistema de crenças marxista[1]:
(1) “A história da humanidade é a história da lutas de classe.”[2] É a história das lutas entre uma classe dominante relativamente pequena e uma classe de explorados bastante numerosa. A principal forma de exploração é econômica: a classe dominante expropria parte da produção gerada pelos explorados – ou, como dizem os marxistas, a classe dominante “se apropria da mais-valia social e a utiliza para seus próprios propósitos de consumo.”
(2) A classe dominante é unida pelo seu interesse comum de manter sua posição exploratória e maximizar sua mais-valia apropriada espoliativamente. Ela nunca deliberadamente abre mão do poder ou da renda advinda da exploração. Logo, qualquer perda de poder ou de renda da classe exploradora só será alcançada por meio de conflitos, cujos resultados efetivos vão depender, em última instância, da consciência de classe dos explorados – isto é, se os explorados estão cientes das suas próprias condições, o quão cientes estão disso e, principalmente, se estão conscientemente unidos aos outros membros da sua classe em oposição conjunta à exploração.
(3) O domínio de classe se manifesta essencialmente através de arranjos específicos que estão relacionados à forma como os direitos de propriedade são estipulados – ou, na terminologia marxista, na forma de “relações de produção” específicas. Para proteger esse arranjo ou essa relação de produção, a classe dominante forma o estado e assume seu comando, transformando-o em um aparato de compulsão e coerção. O estado impõe uma determinada estrutura de classes e estimula a sua reprodução através da administração de um sistema de “justiça de classe”, e ajuda na criação e no sustento de uma superestrutura ideológica voltada para dar legitimidade à existência do domínio de classe.
(4) Internamente, o processo de competição dentro da classe dominante gera uma tendência de crescente concentração e centralização. Um sistema multipolar de exploração vai sendo gradualmente substituído por um sistema oligárquico ou monopolista. Um número cada vez menor de centros de exploração continua em operação – e aqueles que continuam estão cada vez mais integrados a uma ordem hierárquica. Externamente (isto é, no que diz respeito ao sistema internacional), esse processo de centralização levará a guerras imperialistas entre estados e à expansão territorial do domínio explorador. Quanto mais avançado estiver o processo de centralização, mais intensas serão as guerras.
(5) Finalmente, com a centralização e a expansão do domínio explorador gradualmente se aproximando do seu limite supremo de dominação global, o domínio de classe irá se tornar crescentemente incompatível com uma maior evolução e melhoria das “forças produtivas”. Estagnações econômicas e crises se tornam cada vez mais rotineiras, criando assim as “condições objetivas” para o surgimento de uma revolucionária consciência de classe dos explorados. A situação se torna propícia para a criação de uma sociedade sem classes, para o “desaparecimento do estado”, com o governo do homem sobre o homem sendo substituído pela simples administração das coisas.[3] Como resultado, haverá uma prosperidade econômica sem precedentes.
Todas essas teses podem ser perfeitamente justificáveis, como eu demonstrarei. Infelizmente, no entanto, o marxismo – que apoia a todas elas – foi a ideologia que fez mais do que qualquer outra para desacreditar as validades dessas teses, justamente por tê-las derivado de uma teoria de exploração evidentemente absurda.
Qual é essa teoria marxista da exploração? De acordo com Marx, os sistemas sociais pré-capitalistas, como a escravidão e o feudalismo, são caracterizados pela exploração. Não há nenhuma controvérsia quanto a isso. Afinal, o escravo não é um trabalhador livre e não se pode dizer que ele ganha por estar escravizado. Ao contrário, ao ser escravizado, sua utilidade é reduzida em prol de um aumento na riqueza apropriada pelo escravizador. O interesse do escravo e o interesse do dono do escravo são de fato antagônicos. O mesmo é válido quanto aos interesses do senhor feudal que extrai impostos sobre a terra de um agricultor que se apropriou originalmente dela. Os ganhos do senhor são as perdas do agricultor. E também não há controvérsia quanto ao fato de que tanto a escravidão quanto o feudalismo de fato obstruem o desenvolvimento das forças produtivas. Nem o escravo nem o servo serão tão produtivos quanto seriam sem a escravidão ou a servidão.
A ideia genuinamente nova do marxismo foi afirmar que, essencialmente, nada muda quando se sai do sistema escravagista para o sistema capitalista; nada muda se o escravo se torna um trabalhador livre, ou se o agricultor decide cultivar uma terra originalmente apropriada por outra pessoa e paga um aluguel para fazer isso. Para não haver dúvida, Marx, no famoso capítulo XXIV do primeiro volume de seu O Capital, intitulado “A Chamada Acumulação Original”, fornece uma descrição histórica do surgimento do capitalismo, em que chama a atenção para o fato de que grande parte ou até mesmo a maioria da propriedade inicial capitalista é o resultado de pilhagens, anexações e conquistas.
Similarmente, no capítulo XXV, sobre a “Moderna Teoria do Colonialismo”, o papel da força e da violência na exportação do capitalismo para o – como diríamos hoje em dia – Terceiro Mundo é fortemente enfatizado. Reconhecidamente, tudo isso está correto em termos gerais – e, na medida em que isso está correto, não pode haver contendas quanto à rotulação desse tipo de capitalismo como explorador.
Porém, é preciso estar atento para o fato de que, nesse ponto, Marx está incorrendo em uma trapaça. Ao fazer investigações históricas e incitar a indignação do leitor quanto às brutalidades que ocorreram durante a formação de muitas fortunas capitalistas, ele na verdade está evadindo o assunto em questão. Ele muda o enfoque e se distrai para o fato de que sua tese é na verdade inteiramente diferente, a saber: que mesmo sob um capitalismo “limpo”, por assim dizer (ou seja, sob um sistema no qual a apropriação original do capital foi inteiramente honesta, sem qualquer tipo de pilhagem), com trabalho e poupança, o capitalista que contratou mão de obra para ser empregada com seu capital estaria ainda assim praticando exploração. Com efeito, Marx considerava a comprovação desta tese como a sua mais importante contribuição à análise econômica.
Qual seria, então, sua prova do caráter explorador de um capitalismo limpo?
Sua prova consiste na observação de que os preços dos fatores de produção, em particular os salários pagos aos trabalhadores pelos capitalistas, são menores do que os preços dos bens produzidos. O trabalhador, por exemplo, recebe um salário que representa os bens de consumo produzidos em três dias, sendo que ele, na verdade, trabalhou cinco dias por seu salário e produziu um total de bens de consumo que excede em valor o que ele recebe como remuneração. Os bens produzidos durante esses dois dias extras – a mais-valia, na terminologia marxista – são apropriados pelo capitalista. Portanto, de acordo com Marx, existe exploração.[4]
O que há de errado com essa análise?[5] A resposta se torna óbvia tão logo se pergunta por que seria possível o trabalhador concordar com esse arranjo. Ele concorda porque seu pagamento salarial representa bens presentes – ao passo que os serviços de sua mão de obra representam apenas bens futuros –, e ele, como qualquer ser humano, atribui um valor muito maior aos bens presentes do que aos bens futuros. Afinal, ele também poderia optar por não vender seus serviços ao capitalista e, com isso, se apossar ele próprio do “valor total” de sua produção.
Mas isso, é claro, significa que ele teria de esperar muito mais tempo até que quaisquer bens de consumo se tornassem disponíveis para ele. Ao vender sua mão de obra, ele demonstra preferir uma menor quantidade de bens de consumo agora a uma quantidade possivelmente maior em algum momento futuro.
Por outro lado, por que o capitalista iria querer fazer um acordo com o trabalhador? Por que ele iria querer adiantar bens presentes (dinheiro) para o trabalhador em troca de serviços que trarão frutos somente mais tarde? Obviamente, ele não iria querer pagar, por exemplo, $100 agora se ele fosse receber a mesma quantia daqui a um ano. Neste caso, por que não simplesmente ficar com o dinheiro por um ano e, com isso, receber o benefício extra de tê-lo sob seu total controle durante todo esse tempo? Ao invés disso, é natural que ele espere receber uma soma maior que $100 no futuro a fim de poder abrir mão dos $100 agora na forma de salário pago para o trabalhador. Ele espera ser capaz de auferir um lucro – ou, mais corretamente, um retorno de juros.
Ele também é restringido pela preferência temporal, isto é, pelo fato de que um indivíduo invariavelmente prefere possuir um bem no presente a ter esse mesmo bem apenas no futuro. Se um indivíduo pode obter uma maior soma no futuro sacrificando uma soma menor no presente, por que então o capitalista não poupa mais do que está poupando? Por que ele não contrata mais trabalhadores do que contrata atualmente, dado que cada um deles promete um retorno de juros a mais? A resposta novamente deveria ser óbvia: porque o capitalista é também um consumidor como qualquer outro indivíduo, e como todo ser humano simplesmente não pode deixar de ser um. A quantidade que ele pode poupar e investir é restringida pela necessidade de ele, assim como o trabalhador, também requerer uma oferta de bens presentes “suficientemente grande para garantir a satisfação de todas as necessidades cuja satisfação durante o período de espera é considerada mais urgente do que as vantagens que um período ainda maior de produção poderia proporcionar”.[6]
O que há de errado, portanto, com a teoria da exploração de Marx é que ele não compreende o fenômeno da preferência temporal como uma categoria universal da ação humana.[7] O fato de o trabalhador não receber seu “valor total” não tem nada a ver com exploração; simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto. Contrariamente ao caso do escravo e do dono de escravos, em que o último se beneficia à custa do primeiro, o relacionamento entre o trabalhador livre e o capitalista é mutuamente benéfico. O trabalhador entra no acordo porque, dada a sua preferência temporal, ele prefere uma menor quantidade de bens presentes a uma quantidade maior no futuro; e o capitalista entra no acordo porque, dada sua preferência temporal, ele possui uma preferência de ordem inversa, dando mais valor a uma quantidade maior de bens futuros a uma quantidade menor de bens presentes. Seus interesses não são antagônicos, mas sim harmoniosos. Caso o capitalista não tivesse a expectativa de receber um retorno de juro, o trabalhador estaria numa situação pior, pois teria que esperar mais tempo do que deseja; e sem a preferência do trabalhador por bens presentes, o capitalista estaria numa situação pior, pois teria que recorrer a métodos de produção mais curtos e com menos estágios – logo, menos eficientes – do que aqueles que deseja adotar.
Tampouco o sistema salarial capitalista pode ser considerado um obstáculo à evolução das forças de produção, como afirma Marx. Se o trabalhador não pudesse vender seus serviços de mão de obra e se o capitalista não os pudesse comprar, a produção não seria maior, mas sim menor, pois a produção teria de ser feita com níveis relativamente reduzidos de acumulação de capital.
Sob um sistema de produção socializado, a evolução das forças produtivas – ao contrário do que afirmava Marx – não alcançaria novos ápices, mas, sim, afundaria dramaticamente.[8] Afinal, é algo óbvio que a acumulação de capital deve ser feita por indivíduos específicos em pontos específicos do tempo e do espaço por meio da apropriação original, da produção e da poupança. Em cada caso, a acumulação de capital é realizada na expectativa de que ela levará a um aumento da produção de bens futuros. O valor que um indivíduo atribui ao seu capital reflete o valor que ele atribui a todas as rendas futuras possibilitadas por esse capital, renda essa descontada por sua preferência temporal.
Se, como no caso de fatores de produção sob propriedade coletiva, um indivíduo não mais possui controle exclusivo do seu capital acumulado – e, portanto, sobre a renda futura a ser derivada do emprego deste capital –, sendo que o controle parcial deste capital foi dado a outros indivíduos que não são produtores e nem poupadores, o valor para esse indivíduo da renda esperada e, consequentemente, o valor dos bens de capital será reduzido. Sua preferência temporal efetiva subirá; ele passará a ser mais imediatista, mais voltado para o presente. Haverá menos apropriação original de recursos escassos e menos poupança para a manutenção dos recursos existentes e para a produção de novos bens de capital. O período de produção, o número de estágios da estrutura de produção, será reduzido e o resultado será um relativo empobrecimento.
Se a teoria marxista da exploração capitalista e suas ideias sobre como acabar com a exploração e estabelecer a prosperidade universal são falsas a ponto de serem ridículas, resta claro que qualquer teoria de história que seja derivada dela também deve ser falsa. Ou, caso ela esteja correta, sua derivação se deu de modo totalmente incorreto.
Ao invés de incorrer na prolixa e enfadonha tarefa de explicar todas as falhas presentes no argumento marxista, que começa com sua teoria de exploração capitalista e termina na sua teoria de história como acabei de descrever, tomarei um atalho. A seguir, delinearei, da forma mais breve e correta possível, a teoria austríaca-misesiana-rothbardiana da exploração; farei um esboço explanatório de como essa teoria faz sentido partindo da teoria de classes da história; e ressaltarei, ao longo do percurso, algumas diferenças essenciais entre esta teoria de classes e a teoria marxista, apontando também algumas afinidades intelectuais entre o austrianismo e o marxismo, afinidades essas que advêm de suas convicções comuns de que realmente existe uma exploração e uma classe dominante.[9]
O ponto de partida para a teoria austríaca da exploração é claro e simples, como deve ser. Na realidade, ele já foi estabelecido por meio da análise da teoria marxista: a exploração caracterizava a relação entre escravo e mestre e entre servo e senhor feudal. Porém, não foi possível encontrar nenhuma exploração sob um sistema de capitalismo limpo. Qual a diferença principal entre esses dois casos? A resposta é: o reconhecimento ou não do princípio da apropriação original (o princípio que diz que os recursos naturais previamente sem dono podem ser apropriados originalmente quando um indivíduo coloca-os em uso ou, segundo as palavras de John Locke, “mistura seu trabalho a eles”).
O camponês sob o feudalismo é explorado porque ele não possui controle exclusivo sobre a terra da qual ele se apropriou originalmente, e o escravo porque ele não possui controle exclusivo sobre seu corpo, do qual, obviamente, ele deve ser o proprietário original. Se, ao contrário, todos possuírem controle exclusivo sobre seus próprios corpos (ou seja, se todos forem trabalhadores livres) e agirem de acordo com o princípio da apropriação original, não há como haver exploração. É logicamente absurdo afirmar que uma pessoa que se apropria de bens previamente não apropriados por ninguém, ou que emprega esses bens na produção de bens futuros, ou que poupa os bens presentemente apropriados ou produzidos com o intuito de aumentar a oferta futura de bens, estaria explorando alguém ao agir assim. Nada foi tirado de ninguém nesse processo, e bens adicionais foram realmente criados.
E seria igualmente absurdo afirmar que um acordo voluntariamente feito entre diferentes apropriadores originais, poupadores e produtores envolvendo seus bens e serviços (que foram apropriados de maneira não exploratória) pode possivelmente conter alguma injustiça ou exploração. Ao contrário, a exploração ocorre justamente quando há algum desvio do princípio da apropriação original. Ocorre uma exploração sempre que um indivíduo exitosamente adquire o controle parcial ou total de recursos dos quais ele não se apropriou originalmente, não poupou ou não produziu, e os quais ele não adquiriu contratualmente de outro indivíduo que havia sido o genuíno proprietário-produtor desses recursos. Exploração ocorre quando apropriadores originais, produtores e poupadores são expropriados por não-produtores, não-poupadores e não-contratantes que só chegaram mais tarde. Exploração é quando pessoas cujas propriedades foram adquiridas por meio do trabalho e do contrato são expropriadas por pessoas que simplesmente alegam ter direitos a essas propriedades; direitos esses derivados do nada, e que desprezam todo o trabalho e todos os contratos feitos por terceiros.[10]
Desnecessário dizer que a exploração assim definida é, com efeito, parte integral da história humana. Um indivíduo pode adquirir riqueza e aumentá-la tanto por meio da apropriação original, da produção, da poupança ou de contratos, quanto por meio da expropriação pura e simples de outros apropriadores originais, produtores, poupadores ou contratantes. Não há outras maneiras. Ambos os métodos são naturais à humanidade. Junto com a apropriação original, a produção e a contratação, sempre houve no mundo propriedades que foram adquiridas por meio de métodos não-produtivos e não-contratuais. Na história do desenvolvimento econômico, assim como os produtores e contratantes podem formar empresas, empreendimentos e corporações, também os exploradores podem fazer conluio para criar empreendimentos, governos e estados exploradores em larga escala.
A classe dominante (a qual, novamente, pode ser internamente estratificada) inicialmente é formada por membros dessa empresa exploradora. E com uma classe dominante estabelecida sobre um dado território e ocupando-se de expropriar os recursos econômicos de uma classe de produtores explorados, o centro de toda a história de fato passa a ser a luta entre exploradores e os explorados. A história, portanto, se corretamente contada, é essencialmente a história das vitórias e derrotas dos dominadores em suas tentativas de maximizar suas rendas adquiridas exploratoriamente, e dos dominados em suas tentativas de resistir a essa tendência e de tentar revertê-la.
É quanto a essa abordagem da história que os austríacos e os marxistas concordam, e é por isso que existe uma notável afinidade intelectual entre as investigações históricas austríacas e marxistas. Ambas as escolas se opõem a uma historiografia que reconhece apenas ação ou interação, tudo econômica e moralmente no mesmo nível; e ambas se opõem a uma historiografia que, ao invés de adotar uma posição com juízo de valor neutro, julga-se no dever de inserir arbitrariamente julgamentos de valor subjetivo com o intuito de realçar suas narrativas históricas. Em vez disso, a história precisa ser contada em termos de liberdade e exploração, parasitismo e empobrecimento econômico, propriedade privada e sua destruição – caso contrário, ela estará sendo contada falsamente.[11]
Ao passo que empresas produtivas surgem e desaparecem em decorrência do apoio voluntário (ou de sua ausência) dos consumidores, uma classe dominante nunca chega ao poder porque houve uma demanda por ela; tampouco ela abdica do poder quando sua abdicação é explicitamente demandada. Não se pode dizer, nem com muita imaginação, que apropriadores originais, produtores, poupadores e contratantes demandaram suas próprias expropriações. Eles devem ser coagidos a aceitá-la, e isso prova de maneira conclusiva que a existência dessa empresa exploradora não é demandada de forma alguma. Tampouco se pode dizer que uma classe dominante pode ser derrubada por meio da abstenção de transações com ela, assim como tal medida pode pôr abaixo um empreendimento produtivo. Afinal, a classe dominante adquire sua renda por meio de transações não-produtivas e não-contratuais, sendo assim jamais afetada por boicotes. O que torna possível o surgimento de uma empresa exploratória, e a única medida que pode extingui-la, é um estado específico da opinião pública – ou, na terminologia marxista, um estado específico de consciência de classe.
Um explorador cria vítimas, e vítimas sempre serão inimigos em potencial. É possível que essa resistência seja duradouramente suprimida pela força – como, por exemplo, no caso de um grupo de homens que explora outro grupo aproximadamente do mesmo tamanho. Entretanto, é necessário muito mais do que força para conseguir ampliar a exploração sobre uma população cujo tamanho é várias vezes maior do que o seu. Para que isso aconteça, uma empresa precisa também ter o apoio do público. A maioria da população deve aceitar as ações exploradoras como legítimas. Essa aceitação pode variar do entusiasmo vigoroso à resignação passiva. Mas é necessário haver uma aceitação no sentido de que uma maioria já deve ter abdicado da ideia de oferecer alguma resistência ativa ou passiva a qualquer tentativa de aquisição de propriedades por meio de métodos não-produtivos e não-contratuais. A consciência de classe deve estar baixa, rudimentar e confusa. Somente enquanto esse estado de coisas persistir haverá espaço para uma empresa exploradora prosperar, mesmo que realmente não haja nenhuma demanda por ela.
Somente se os explorados e expropriados desenvolverem uma clara ideia de sua real situação e se unirem a outros membros da própria classe por meio de um movimento ideológico que dê expressão à ideia de uma sociedade sem classes, na qual toda forma de exploração é abolida, poderá a força e o poder da classe dominante serem debilitados. Somente se a maioria do público explorado se tornar conscientemente integrado a esse movimento e se mostrar correspondentemente indignado com todas as aquisições de propriedade que ocorrem por meio de métodos não-produtivos e não-contratuais, e demonstrar desprezo por todos que praticam esses atos, pode aquele poder se desmoronar.
A gradual abolição do domínio feudal e absolutista e o surgimento de sociedades crescentemente capitalistas na Europa Ocidental e nos EUA – junto com um crescimento econômico e populacional sem precedentes – foi resultado de uma crescente consciência de classe entre os explorados, os quais foram ideologicamente moldados pelas doutrinas do direito natural e do liberalismo. Quanto a isso, os austríacos e os marxistas concordam.[12] Eles discordam, contudo, quanto à próxima afirmação: a reversão desse processo de liberalização e os níveis gradualmente crescentes de exploração nessas sociedades desde o último terço do século XIX, e particularmente consideráveis desde a Primeira Guerra Mundial, são o resultado de uma perda da consciência de classe. Com efeito, na visão austríaca, o marxismo possui enorme parcela de culpa por essa situação: ele desviou a atenção do correto modelo de exploração (a luta entre o apropriador original/produtor/poupador/contratante e o não-apropriador original/não-produtor/não-poupador/não-contratante) para o falacioso modelo do trabalhador assalariado versus o capitalista, assim bagunçando as coisas.[13]
O estabelecimento de uma classe dominante sobre uma classe explorada – cujo tamanho é várias vezes maior que o seu – por meio da coerção e da manipulação da opinião pública (isto é, por um baixo grau de consciência de classe entre os explorados) possui sua expressão institucional mais básica na criação de um sistema de direito público sobreposto ao direito privado. A classe dominante se dissocia das outras classes e protege sua posição como classe dominante adotando uma constituição que defende todo o funcionamento de sua própria empresa. Por um lado, ao formalizar as operações internas dentro do aparato do estado, bem como suas relações com a população explorada, uma constituição cria algum grau de estabilidade jurídica. Quanto mais as noções familiares e populares de direito privado estiverem incorporadas na constituição e no direito público, mais propício isso será para a criação de uma opinião pública favorável. Por outro lado, qualquer constituição e qualquer lei pública também formalizam o status de imunidade da classe dominante em relação ao princípio da apropriação original. Uma constituição formaliza o direito dos representantes do estado de incorrerem em aquisições de propriedade por meio de métodos não-produtivos e não-contratuais, e a subordinação suprema do direito privado ao direito público.
A justiça de classe – isto é, a dualidade entre um conjunto de leis para os governantes e outro conjunto para os governados – vem para sustentar esse dualismo do direito público e privado e para sustentar a dominação do direito público sobre o direito privado e infiltrar este por aquele. Ao contrário do que os marxistas pensam, não é porque os direitos de propriedade privada são reconhecidos pela lei, que a justiça de classe é estabelecida. Na verdade, a justiça de classe surge precisamente quando uma distinção legal existe entre uma classe de pessoas agindo sob e sendo protegida pelo direito público e outra classe agindo sob e sendo protegida por um direito privado subordinado. Mais especificamente, portanto, a proposição básica da teoria marxista do estado é particularmente falsa. O estado não é explorador porque protege os direitos de propriedade dos capitalistas, mas sim porque ele próprio está isento da restrição de ter que adquirir propriedade por meios produtivos ou contratuais.[14]
Entretanto, apesar deste erro fundamental, o marxismo, porque interpreta corretamente o estado como explorador (ao contrário, por exemplo, da Escola da Escolha Pública [Public Choice School], que o vê como uma empresa normal entre outras[15]), nos fornece alguns vislumbres importantes com relação à lógica das operações do estado. Por exemplo, ele reconhece a estratégica função das políticas estatais de redistribuição de renda. Como uma empresa exploradora, o estado tem de estar, a todos os momentos, interessado em um baixo grau de consciência de classe entre os dominados. A redistribuição de propriedade e de renda – uma política de divide et impera – é a forma pela qual o estado pode criar uma divisão entre o público e destruir a formação de uma consciência de classe unificadora entre os explorados.
Além disso, a redistribuição do próprio poder estatal por meio da democratização do processo de entrada no aparato estatal – em que as principais posições do governo estão abertas para todos, e em que se concede a todos o direito de participar na determinação dos eleitos e das políticas do estado – é um meio de reduzir a resistência dos explorados à exploração que sofrem. Ademais, o estado de fato é, como os marxistas o vêem, o grande centro de propaganda ideológica e mistificação: exploração na verdade significa liberdade; impostos na verdade são contribuições voluntárias; relações não-contratuais são na verdade “conceitualmente” contratuais; ninguém é governado por ninguém, mas nós todos nos governamos a nós mesmos; sem o estado não haveria lei nem segurança; e os pobres morreriam, etc. Tudo isso é parte da superestrutura ideológica concebida para legitimar uma base essencial, porém dissimulada, de exploração econômica.[16]
E, finalmente, os marxistas também estão corretos ao perceberem a estreita associação entre o estado e as grandes empresas, especialmente a elite bancária – embora a explicação deles para isso seja incorreta. A razão desse conluio não é que o establishment burguês veja o estado – e por isso o defenda – como o protetor dos direitos de propriedade privada e da santidade dos contratos. Muito pelo contrário, o establishment corretamente vê o estado como a antítese da propriedade privada, e tem interesse nele justamente por essa razão. Quanto mais bem sucedida for uma empresa, maior o perigo potencial de ela sofrer uma exploração governamental, mas também maiores serão os ganhos potenciais que poderão ser auferidos caso ela possa conseguir a proteção especial do governo e ficar isenta do peso total da concorrência capitalista.
É por isso que a elite empresarial tem interesse no estado e em tentar infiltrá-lo. A elite dominante, por sua vez, tem interesse em cooperar com a elite empresarial por causa do poder financeiro desta. Mais especificamente, a elite bancária é de interesse especial do estado porque, sendo uma empresa exploradora, o estado naturalmente deseja possuir completa autonomia para ‘falsificar’ dinheiro – isto é, para criar moeda sem restrições.
Ao se oferecer para incluir a elite bancária em suas próprias maquinações contraventoras, dando aos bancos o privilégio de poderem criar dinheiro adicional sobre todo o dinheiro já criado pelo estado – arranjo esse que ocorre sob um regime bancário de reservas fracionárias –, o estado pode facilmente alcançar seu objetivo: estabelecer um sistema monetário monopolizado pelo estado e um sistema bancário cartelizado e controlado por um banco central. E por meio dessa direta conexão com o sistema bancário e, por extensão, com os maiores clientes dos bancos, a classe dominante efetivamente se expande para muito além do próprio aparato do estado, chegando até os nervos centrais da sociedade civil – um arranjo não muito diferente, pelo menos em aparência, da imagem que os marxistas tanto gostam de pintar sobre a cooperação entre o sistema bancário, as elites empresariais e o estado.[17]
A competição que ocorre dentro da classe dominante e entre as diferentes classes dominantes gera uma tendência de crescente concentração. O marxismo está certo quanto a isto. Entretanto, sua incorreta teoria da exploração novamente faz com que os marxistas situem a causa dessa tendência no local errado. O marxismo vê essa tendência como sendo inerente à competição capitalista. Contudo, a realidade é exatamente inversa: é precisamente enquanto as pessoas estiverem envolvidas em um capitalismo limpo, que a competição não será uma forma de interação de soma-zero. O apropriador original, o produtor, o poupador e o contratante não ganham à custa de terceiros. Seus ganhos deixam as propriedades físicas de terceiros completamente inalteradas; ou então geram ganhos mútuos (como no caso de todas as trocas firmadas por meio de contratos).
O capitalismo, portanto, aumenta a riqueza absoluta. Porém, sob esse regime, não se pode dizer que exista qualquer tendência sistemática rumo a uma concentração relativa.[18] Ao contrário, interações que resultam em uma soma-zero de ganhos caracterizam não apenas o relacionamento entre o governante e o governado, mas também entre governantes que concorrem entre si. A exploração, definida como aquisições de propriedade por meios não-produtivos e não-contratuais, só é possível quando há algo a ser apropriado coercivamente. Entretanto, se houvesse livre concorrência no ramo da exploração, não restaria mais nada para ser expropriado. Logo, a exploração requer um monopólio sobre um dado território e sua população; e a concorrência entre os exploradores é, por sua própria natureza, eliminatória e precisa desencadear uma tendência à relativa concentração de empresas exploradoras assim como uma tendência à centralização dentro de cada uma dessas empresas. O desenvolvimento de estados, e não de empresas capitalistas, fornece a melhor ilustração dessa tendência: há hoje um número significativamente menor de estados controlando exploratoriamente territórios que são muito maiores do que nos séculos anteriores. E dentro do aparato de cada estado houve de fato uma constante tendência de aumento dos poderes do governo central em detrimento de suas subdivisões regionais e locais.
No entanto, fora do aparato estatal, uma tendência de relativa concentração também se tornou aparente pela mesma razão – não, como já deve estar claro agora, por causa de qualquer característica inerente ao capitalismo, mas sim porque a classe dominante expandiu seu domínio para o seio da sociedade civil por meio da criação de uma aliança entre estados, sistema bancário e grandes empresas, e, em particular, por meio do estabelecimento de um sistema de bancos centrais. Então, se ocorre uma concentração e uma centralização do poder estatal, é natural que esse processo seja acompanhado paralelamente de um outro processo de relativa concentração e cartelização do sistema bancário e do setor industrial. Em conjunto com esses maiores poderes estatais, aumentam também os poderes do sistema bancário e das empresas ligadas ao establishment de eliminar seus concorrentes ou de colocá-los em desvantagem econômica por meio de expropriações realizadas por meios não-produtivos e não-contratuais. A concentração de empresas é simplesmente o reflexo de uma estatização da vida econômica.[19]
Os principais meios utilizados para a expansão dos poderes do estado e para a eliminação dos centros rivais de exploração é a guerra e a dominação militar. A concorrência interestados implica uma tendência à guerra e ao imperialismo. Na condição de centros de exploração, seus interesses são antagônicos por natureza. Ademais, possuindo cada um deles – internamente – o poder de aplicar tributação e o poder absoluto sobre a criação de dinheiro, torna-se possível para as classes dominantes obrigarem terceiros a pagar por suas guerras. Naturalmente, se alguém não tem de pagar ele próprio por seus próprios empreendimentos arriscados, mas pode obrigar terceiros a fazê-lo, então é certo que ele tenderá a assumir mais riscos e a ser mais beligerante do que seria de outra forma.[20]
O marxismo, ao contrário de muitas das chamadas ciências sociais burguesas, compreende corretamente os fatos: há realmente na história uma tendência ao imperialismo; e os maiores poderes imperialistas são de fato as nações capitalistas mais avançadas. Entretanto, a explicação novamente é errônea. É o estado, como uma instituição isenta das regras capitalistas de aquisições de propriedade, que é agressivo por sua própria natureza. E a evidência histórica de uma correlação próxima entre o capitalismo e o imperialismo contradiz isso apenas aparentemente.
A explicação surge facilmente no fato de que, para ter êxito nas guerras interestados, um estado precisa ter à sua disposição recursos econômicos suficientes (em termos relativos). Tudo o mais constante, o estado com mais amplos recursos à sua disposição será o vencedor. Sendo uma empresa exploradora, o estado é por natureza destruidor de riqueza e um obstáculo à acumulação de capital. A riqueza é produzida exclusivamente pela sociedade civil; e quanto mais fracos os poderes exploradores do estado, mais riqueza e capital a sociedade consegue acumular. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais fraco ou mais liberal for um estado internamente, mais o capitalismo irá se desenvolver; poder extrair recursos de uma economia capitalista já desenvolvida torna o estado mais rico; e um estado mais rico é capaz de empreender guerras expansionistas em maior escala e com maior êxito. É esse relacionamento que explica por que inicialmente foram os estados da Europa Ocidental, e em particular a Grã-Bretanha, as maiores potências imperialistas, e por que no século XX esse papel foi assumido pelos EUA.
E uma explicação similarmente direta, embora novamente totalmente não-marxista, existe para a observação frequentemente feita pelos marxistas de que o sistema bancário e a elite empresarial normalmente estão entre os mais ardorosos apoiadores do poderio militar e do expansionismo imperialista. Esse apoio não ocorre porque a expansão dos mercados capitalistas necessita que haja exploração, mas sim porque a expansão desses empreendimentos que são protegidos e privilegiados pelo estado requer que essa proteção e privilégio lhes seja estendida também dentro desses países estrangeiros, fazendo com que seus novos concorrentes estrangeiros sejam tolhidos através de aquisições de propriedade feitas por meios não-contratuais e não-produtivos, da mesma forma ou até mais pronunciadamente do que ocorre na concorrência dentro do país de origem.
Especificamente, o establishment bancário e empresarial irá apoiar o imperialismo sempre que esse apoio prometer levar a uma posição de domínio militar do estado aliado sobre outro estado. Porque assim, a partir de uma posição de força militar, torna-se possível estabelecer um sistema que pode ser chamado de imperialismo monetário. O estado dominante irá utilizar seu poder superior para impor uma política de inflação coordenada internacionalmente. Seu próprio banco central irá estabelecer o ritmo do processo de criação de dinheiro, e os bancos centrais dos estados dominados serão obrigados a utilizar essa moeda dominante como suas próprias reservas e, a partir daí, inflacionar sua base monetária de acordo com a inflação que ocorre no estado dominante.
Assim, junto com o estado dominante e sendo os primeiros recebedores dessa moeda de reserva internacional, o establishment bancário e empresarial pode expropriar propriedades estrangeiras e produtores de riqueza a um custo praticamente zero. Surge assim uma dupla camada de exploração: um estado estrangeiro e uma elite estrangeira, agindo em conjunto com o estado e a elite nacionais, expropriam silenciosamente a classe explorada dos territórios dominados, causando prolongada dependência econômica e relativa estagnação econômica em relação à nação dominadora. É essa situação – totalmente não capitalista – que caracteriza o atual status dos Estados Unidos e do dólar americano, e que gera as (corretas) acusações sobre a exploração econômica feita pelos EUA e sobre o imperialismo do dólar.[21]
Finalmente, a crescente concentração e centralização de poderes exploratórios leva à total estagnação econômica, criando assim as condições objetivas para a destruição final desses poderes e o consequente surgimento de uma sociedade sem classes capaz de produzir uma prosperidade econômica jamais vista.
Ao contrário do que dizem os marxistas, essa sociedade não será o resultado de nenhuma lei histórica. Com efeito, não existem leis históricas inexoráveis, como os marxistas imaginam.[22] Tampouco será isso o resultado de uma tendência contínua de queda da taxa de lucros, oriunda de um aumento da composição orgânica do capital (isto é, de um aumento na proporção do capital constante em relação ao capital variável), como Marx pensava. Assim como a teoria do valor-trabalho é irreparavelmente falsa, também o é a lei da tendência de queda da taxa de lucros, a qual se baseia na lei do valor-trabalho. A fonte do valor, dos juros e do lucro não está exclusivamente no trabalho, mas sim na ação – isto é, no emprego de meios escassos para se atingir determinados fins; ação essa empreendida por agentes econômicos que são limitados pela preferência temporal e pela incerteza (conhecimento imperfeito). Não há razão para supor, portanto, que mudanças na composição orgânica do capital devam ter qualquer relação sistemática com as mudanças nos juros e no lucro.
Em vez disso, a probabilidade de crises que estimulam o desenvolvimento de um maior grau de consciência de classe (isto é, que estimulam as condições subjetivas para a derrubada da classe dominante) aumenta por causa da – para usar um dos termos favoritos de Marx – “dialética” da exploração da qual falei anteriormente: a exploração é destruidora da formação de riqueza.
Portanto, na concorrência entre empresas exploradoras (estados), aqueles estados que são internamente menos exploradores ou mais liberais tendem a sobrepujar os estados que são internamente mais exploradores e menos liberais, pois aqueles terão mais recursos econômicos (mais riqueza) à sua disposição. O processo de imperialismo tem inicialmente um efeito relativamente libertador sobre as sociedades que passam a ficar sob seu controle. Um modelo social relativamente mais capitalista é exportado para sociedades relativamente menos capitalistas (mais exploradoras). O desenvolvimento das forças produtivas é estimulado: a integração econômica é promovida, a divisão do trabalho é ampliada e um genuíno mercado mundial é estabelecido. A população aumenta como consequência disso tudo, e as expectativas quanto ao futuro econômico sobem para níveis sem precedentes.[23]
Entretanto, com o domínio explorador se consolidando e a concorrência interestados sendo reduzida ou mesmo eliminada nesse processo de expansionismo imperialista, as limitações externas sobre o poder do estado dominante de explorar sua própria população, bem como seu poder de expropriação, começam a desaparecer gradualmente. A exploração interna, a tributação e as regulamentações começam a aumentar na medida em que a classe dominante vai chegando mais perto do seu objetivo supremo de dominação global. A estagnação econômica inevitavelmente se instala e as grandes expectativas – mundiais – são frustradas. E esse cenário – as grandes expectativas sendo crescentemente frustradas por um realidade econômica depressiva – propicia a clássica situação para o surgimento de um potencial revolucionário.[24]
Surge uma desesperadora necessidade de apresentar soluções ideológicas para essa crise emergente. Paralelamente, há também a disseminação da percepção de que o domínio estatal, a tributação e a regulamentação, longe de oferecerem uma solução, na verdade constituem o real problema que precisa ser superado.
Se nessa situação de estagnação econômica, de crise e de desilusão ideológica[25] uma solução positiva for oferecida na forma de uma sistemática e abrangente filosofia libertária em conjunto com sua contrapartida econômica – a Escola Austríaca de economia –, e se essa ideologia for propagada por um movimento ativista, então as chances de se inflamar o potencial revolucionário para o ativismo se tornam altamente positivas e promissoras. Pressões antiestatistas irão aumentar e gerarão uma esmagadora tendência ao desmanche do poder da classe dominante e, por conseguinte, do estado como seu instrumento de exploração.[26]
Contudo, caso isso venha a acontecer – e dependendo da intensidade com que venha a acontecer –, isso não resultará na propriedade coletiva dos meios de produção, contrariamente ao modelo marxista. Com efeito, a propriedade coletiva não é somente economicamente ineficiente, como já foi explicado, mas é também incompatível com a ideia de que o estado vai “desaparecer”.[27] Pois se os meios de produção são de propriedade coletiva, e se for realisticamente pressuposto que todas as ideias sobre como empregar esses meios não irão coincidir (apenas por milagre isso ocorreria), então são precisamente os meios de produção sob propriedade coletiva que necessitam de ações estatais contínuas – isto é, de uma instituição coercivamente impondo a vontade de uma pessoa sobre uma outra que discorde.
Ao invés disso, o desaparecimento do estado – e por conseguinte o fim da exploração e o início da liberdade e de uma prosperidade econômica jamais vista – significa o estabelecimento de uma sociedade puramente privada, regulada apenas e somente pelo direito privado.
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NOTAS
[1] Sobre isso, ver K. Marx e F. Engels, Manifesto Comunista (1848); K. Marx, Das Kapital, 3 vols. (1867; 1885; 1894); dos marxistas contemporâneos, E. Mandel, Marxist Economic Theory (Londres: Merlin, 1962); idem, Late Capitalism (londres: New Left Books, 1975); P. Baran e P. Sweezy, Monopoly Capital (Nova York: Monthly Review Press, 1966); para uma perspectiva não-marxista, L. Kolakowski, Main Currents of Marxism, G. Wetter, Sovietideologie heute (Frankfurt/M.: Fischer, 1962), vol. 1; W. Leonhard, Sovietideologie heute(Frankfurt/M.: Fischer, 1962), vol. 2.
[2] Manifesto Comunista, seção 1.
[3] Manifesto Comunista, seção 2, últimos dois parágrafos; F. Engels, Von der Autoritaet in: Marx e Engels, Ausgewaehlte Schriften, 2 vols. (Berlim Ocidental: Dietz, 1953), vol. 1, p. 606; idem, Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft, idem, vol. 2, p. 139.
[4] Ver K. Marx, Das Kapital, vol. 1; a apresentação mais curta é seu Lohn, Preis, Profit (1865).
[5] Sobre isso, ver Eugen von Böhm-Bawerk, A Teoria da Exploração do Socialismo-Comunismo.
[6] L. v. Mises, Ação Humana, p. 564; ver também Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Los Angeles: Nash, 1970), pp. 300-01.
[7] Sobre a teoria da preferência temporal dos juros, em adição aos trabalhos citados nas notas 5 e 6, ver também Frank Fetter, Capital, Interest, and Rent (Kansas City: Sheed Andrews and Mcmeel, 1977).
[8] Sobre isso, veja Hans-Hermann Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism (Boston: Kluwer, 1988); idem, “Por que o socialismo sempre irá fracassar“; idem, “The Economics and Sociology of Taxation”, in: Taxation: An Austrian View, editado por Lew Rockwell (Auburn: Mises Institute, 1990).
[9] As contribuições de Mises à teoria da exploração e de classe não são sistemáticas. No entanto, através de seus escritos, ele apresenta interpretações históricas e sociológicas que são análises de classe, mesmo que implicitamente. Digna de nota aqui é a sua aguda análise da colaboração entre o governo e a elite bancária em destruir o padrão-ouro para aumentar seus poderes inflacionários como meio de redistribuição de renda e riqueza fraudulentamente e exploratoriamente em favor deles próprios. Veja, por exemplo, seu Monetary Stabilization e Cyclical Policy (1928) in: idem, On the Manipulation of Money and Credit, editado por B. Greaves (Dobbs Ferry: Free Market Books, 1978); veja também seu Socialism (Indianapolis: Liberty Fund, 1981), capítulo 20; The Clash of Group Interests and Other Essays, Occasional Paper no. 7 (Nova York: Center for Libertarian Studies, 1978). Contudo, Mises não fornece um status sistemático à análise de classe e à teoria da exploração porque ele, em última análise, incorretamente concebe exploração como um mero erro intelectual, que a análise econômica correta pode dissipar. Ele não reconhece completamente que a exploração é também, e provavelmente bem mais, um problema de motivação moral que existe a despeito de toda análise econômica. Rothbard adiciona esta percepção à estrutura misesiana da economia austríaca e torna a análise do poder e das elites do poder uma parte integral da teoria econômica e das explicações histórico-sociológicas; e ele sistematicamente expande o argumento austríaco contra a exploração para incluir a ética na teoria econômica, isto é, uma teoria de justiça lado a lado a uma teoria de eficiência, pois assim a classe dominante pode também ser atacada como imoral. Para a teoria do poder, classe e exploração de Rothbard, veja em particular seu Power and Market (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977); For a New Liberty (New York: McMillan, 1978); The Mystery of Banking (Nova York: Richardson and Snyder, 1983); America’s Great Depression (Kansas City: Shjeed and Ward, 1975). Sobre os importantes precursores da análise de classe austríaca, veja L. Liggio, “Charles Dunoyer e o Liberalismo Clássico Francês”, Journal of Libertarian Studies 1, no. 3, 1977; R. Raico, “Classical Liberal Exploitation Theory”, idem; M. Weinburg, “The Social Analysis of Three Early 19th Century French Liberals: Say, Comte, and Dunoyer”, Journal of Libertarian Studies 2, no.1, 1978; J. T. Salerno, “Comment on the French Liberal School”, Idem; D. M. Hart, “Gustave de MOlinari and the Anti-Statist Liberal Tradition”, 3 partes, Journal of Libertarian Studies 5, nos. 3 e 4, 1981.
[10] Sobre isso, ver também H. H. Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism; idem “The Justice of Economic Efficiency”, Austrian Economics Newsletter, 1, 1988; idem, “The Ultimate Justification of the Private Property Ethics”, Liberty, Setembro 1988.
[11] Veja também sobre esse tema Lord (John) Action, Essays in the History of Liberty (Indianapolis: Liberty Fund, 1985), F. Oppenheimer, System der Soziologie, Vol. II: Der Staat (Stuttgart: G. Fischer, 1964); A. Ruestow, Freedom and Domination (Princeton: Princeton University Press, 1986).
[12] Sobre isso, veja M. N. Rothbard, “Left and Right: The Prospects for Liberty” in: idem, Egalitarianism as a Revolt Against Nature and Other Essays (Washington, D. C.: Libertarian Review Press, 1974).
[13] Apesar de toda a propaganda socialista em contrário, a falsidade da descrição marxista dos capitalistas e trabalhadores como classes antagônicas também vem a carregar certas observações empíricas: logicamente falando, as pessoas podem ser divididas em classes de maneiras infinitamente diferentes. De acordo com a metodologia ortodoxa positivista (a qual eu considero falsa, mas que pretendo aceitar aqui para o bem da argumentação), o melhor sistema de classificação é aquele que nos ajuda a prever melhor. Contudo, a classificação de pessoas como capitalistas ou trabalhadoras (ou como representantes de variados graus dentro da condição de capitalista ou de trabalhador) é praticamente inútil para prever qual posição uma pessoa vai tomar sobre as questões políticas, sociais ou econômicas fundamentais. Ao contrário disso, a correta classificação de pessoas como pagadoras de impostos e reguladas vs. consumidoras de impostos e reguladoras (ou como representativas de variados graus da condição de pagadoras ou consumidores de impostos) é também de fato um poderoso previsor. Sociólogos têm quase sempre desconsiderado isso por causa dos preconceitos marxistas que são quase que universalmente compartilhados entre eles. Mas a experiência cotidiana corrobora esmagadoramente minha tese: descubra se alguém é um funcionário público ou não (e seu cargo e salário), e se a renda e a riqueza de uma pessoa fora do setor público é determinada, e em qual medida, pelas compras do setor público e/ou pelas ações regulatórias – as pessoas irão sistematicamente diferir em sua resposta às questões políticas fundamentais dependendo de suas classificações como consumidoras diretas ou indiretas de impostos ou como pagadoras de impostos.
[14] F. Oppenheimer, System der Soziologie, vol. 2, pp. 322-23, apresenta a questão dessa forma:
A norma básica do estado é poder. Isto é, visto pelo lado de sua origem: violência transformada em poder. Violência é uma das forças mais poderosas para moldar a sociedade, mas não é em si uma forma de interação social. Ela precisa se tornar lei no sentido positivo deste termo, isto é, sociologicamente falando, ela precisa permitir o desenvolvimento de um sistema de ‘reciprocidade subjetiva’; e isso só é possível através de um sistema de restrições autoimpostas quanto ao uso de violência e com a presunção de certas obrigações por seus arrogados direitos. Neste sentido, a violência é transformada em poder e surge um relacionamento de dominação que é aceito não somente pelos governantes, mas, sob circunstâncias não tão severamente opressivas, também pelos súditos, como expressando uma ‘justa reciprocidade’. A partir dessa norma básica, surgem normas secundárias e terciárias implícitas: normas de direito privado, de herança, de direito criminal, obrigacional e constitucional, todas as quais carregam a marca da norma básica de poder e dominação, sendo todas concebidas para influenciar a estrutura do estado de tal forma que aumente a exploração econômica ao seu nível máximo, o qual deve ser compatível com a continuidade da dominação legalmente regulada.
O insight fundamental é o de que “a lei nasce de duas raízes essencialmente diferentes.” Por um lado, a partir da lei da associação dos iguais, que pode ser chamada de direito ‘natural’, mesmo que não seja um ‘direito natural’; e, por outro lado, a partir da lei da violência transformada em poder regulado, a lei dos desiguais”.
Sobre a relação entre o direito privado e público, veja também F. A. Hayek, Law, Legislation, and Liberty, 3 vols. (Chicago: University of Chicago Press, 1973-79), esp. vol. 1, cap. 6 e vol. 2, pp. 85-88.
[15] Veja J. Buchanan e G. Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965), p. 19.
[16] Veja H.-H. Hoppe, Eigentum, Anarchie und Staat (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1987); idem, A Theory of Socialism and Capitalism.
[17] Veja H.-H. Hoppe, “Banking, Nation States and International Politics”, Review of Austrian Economics vol. 4, 1989; M. N. Rothbard, The Mystery of Banking, caps. 15-16.
[18] Sobre isso em particular, M. N. Rothbard, Man, Economy, and State, cap. 10, esp. a seção “The Problem of One Big Cartel”; também L. v. Mises, Socialism, caps. 22-26.
[19] Sobre isso, veja, G. Kolko, The Triumph of Conservatism (Chicago: Free Press, 1967); J. Winstein, The Corporate Ideal in the Liberal State (Boston: Beacon Press, 1968); R. Radosh e M. N. Rothbard, eds. A New History of Leviathan (Nova York: Dutton, 1972); L. Liggio e J. J. Martin, eds., Watershed of Empire (Colorado Springs: Ralph Myles, 1976).
[20] Sobre o relacionamento entre o estado e a guerra, veja E. Krippendorff, Staat un Krieg (Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1985); C. Tilly, “War Making and State Making as Organized Crime”, in P. Evans et al., eds. Bringing the State Back In (Cambridge: Cambridge University Press, 1985); também R. Higgs, Crisis and Leviathan (Nova York: Oxford University Press, 1987).
[21] Para uma versão mais elaborada desta teoria de imperialismo militar e monetário, veja H. H. Hoppe, “Banking, Nation States and International Politics”, Review of Austrian Economics, vol. 4, 1990.
[22] Sobre isso, veja principalmente L. v. Mises, Theory and History (Auburn: Mises Institute, 1985), esp. parte 2.
[23] Pode-se notar aqui que Marx e Engels, mais pronunciadamente no Manifesto Comunista, defenderam o caráter historicamente progressista do capitalismo e elogiaram abertamente suas conquistas sem precedentes. Com efeito, revisando as passagens relevantes do Manifesto, J. A. Schumpeter conclui:
Nunca, e particularmente por nenhum moderno defensor da civilização burguesa, nada como isso foi escrito, nada foi composto dessa forma em favor da classe empresarial com uma tão profunda e extensa compreensão de quais foram suas conquistas e o que elas significaram para a humanidade. (“The Communist Manifesto in Sociology and Economics”, em Essays of J. A. Schumpeter, editado por R. V. Clemence [Port Washington, N. Y.: Kennikat Press, 1951], p. 293)
Dada essa visão do capitalismo, Marx foi ainda mais longe a ponto de defender a conquista britânica da Índia, por exemplo, como um desenvolvimento historicamente progressista. Veja as contribuições de Marx ao New York Daily Tribune de 25 de junho de 1853, 11 de julho de 1853, 8 de agosto de 1853 (Marx e Engels, Werke, vol. 9 [Berlim Ocidental: Dietz, 1960]). Para um marxista contemporâneo tomando uma posição similar quanto ao imperialismo, veja B. Warren, Imperialism: Pioneer of Capitalism (Londres: New Left Books, 1981).
[24] Particularmente sobre a teoria da revolução, veja Charles Tilly, From Mobilization to Revolution (Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1978); idem, As Sociology Meets History (New York: Academic Press, 1981).
[25] Para uma abordagem neomarxista sobre a atual era do “capitalismo tardio”, caracterizado por uma “nova desorientação ideológica” nascida da permanente estagnação econômica e do esgotamento dos poderes legitimadores do conservadorismo e da social-democracia, veja J. Habermas, Die Neue Unvebersichtlichkeit (Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1985); também idem, Legitimation Crisis (Boston: Beacon Press, 1975); C. Offe, Strukturprobleme des kapitalistischen Staates (Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1972).
[26] Para uma abordagem austríaca-libertária do caráter de crise do capitalismo tardio e sobre os prospectos para o nascimento de uma consciência de classe libertária revolucionária, veja M. N. Rothbard, “Left and Right”, idem, For a New Liberty, cap. 15; idem, Ethics of Liberty (Atlantic Highlands: Humanities Press, 1982), parte 5.
[27] Sobre as inconsistências internas da teoria marxista do estado, veja também H. Kelsen, Sozialismus und Staat (Wien, 1965).