A inovação e a evolução requerem liberdade

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4786Uma civilização é o produto de uma visão de mundo já definida, e sua filosofia se manifesta em cada uma de suas realizações.  Os artefatos produzidos pelos homens podem ser chamados de matérias; porém, os métodos utilizados no arranjo das atividades de produção desses artefatos são idealizados pela mente; eles são o resultado de ideias, as quais determinam o que deve ser feito e como deve ser feito.  Todos os ramos de uma civilização são impulsionados pelo espírito que permeia sua ideologia.

A filosofia que é a marca característica do Ocidente e cuja sólida elaboração transformou, nos últimos séculos, todas as instituições sociais tem sido chamada de individualismo.  O individualismo afirma que ideias, tanto as boas quanto as más, originam-se na mente de um indivíduo.  Somente alguns poucos homens são dotados da capacidade de conceber novas ideias.

Porém, dado que as ideias podem funcionar apenas se forem aceitas pela sociedade, tudo vai depender, em última instância, exatamente da aceitação ou da rejeição dessas ideias pela sociedade.  É a população — ela própria incapaz de desenvolver novas maneiras de pensar — quem vai aprovar ou desaprovar as inovações dos pioneiros.  Não há garantia nenhuma de que essa massa de seguidores irá fazer um uso inteligente do poder contido nessas ideias.  Uma sociedade pode rejeitar boas ideias — aquelas cuja adoção iria beneficiá-la — e aderir a ideias ruins que irão prejudicá-la seriamente.

Se uma sociedade opta pelas ideias ruins, a culpa não é apenas dela.  A culpa também deve ser imputada aos pioneiros das ideias boas por não terem tido êxito em apresentar seus pensamentos de uma forma mais convincente.  A evolução benéfica das relações humanas depende, em última instância, da capacidade da raça humana em gerar não apenas autores mas também arautos e disseminadores de ideias benéficas.

Pode-se lamentar o fato de que o destino da humanidade seja determinado pela mente dos homens — a qual certamente não é infalível.  Porém, tal lamento não pode mudar a realidade.  Com efeito, a superioridade do homem deve ser vista em seu poder de escolher entre o bem e o mal.  É precisamente isso que os teólogos tinham em mente quando louvaram a Deus por ter conferido ao homem o livre arbítrio para escolher entre a virtude e o vício.

Os perigos inerentes à incompetência das massas em fazer escolhas certas não podem ser eliminados pela simples transferência dessa autoridade de tomar decisões supremas para uma ditadura de alguns poucos homens, por mais notáveis que estes sejam.  É uma ilusão crer que o despotismo irá sempre se aliar às boas causas.  A característica intrínseca do despotismo é que ele tenta reprimir os esforços dos pioneiros em tentar melhorar a situação de seus semelhantes.

O principal objetivo de um governo despótico é impedir quaisquer inovações que possam porventura ameaçar sua supremacia.  Sua própria natureza o empurra para a adoção de um conservadorismo extremo, isto é, a tendência de preservar as coisas exatamente como estão, não importa o quão desejável uma mudança possa ser para o bem-estar das pessoas.  O regime se opõe a novas ideias e a qualquer espontaneidade da parte de seus súditos.

No longo prazo, mesmo o mais despótico dos governos, com toda a sua brutalidade e crueldade, não é páreo para as ideias.  No final, a ideologia que ganhou o apoio da maioria irá prevalecer e destruir as bases que sustentam a tirania.  E então os oprimidos irão se erguer em rebelião e derrubar seus opressores.

Entretanto, tal processo pode ser bastante lento; pode demorar a acontecer.  Nesse meio tempo, danos irreparáveis podem ser infligidos a toda a população.  Ademais, uma revolução necessariamente gera uma violenta perturbação na cooperação social, produz ódio e divisões irreconciliáveis entre os cidadãos, e pode causar uma amargura que até mesmo séculos serão incapazes de apagar.

Foi com esta ênfase nas ideias, que a filosofia do individualismo demoliu a doutrina do absolutismo, a qual atribuía revelação divina a soberanos e tiranos.  Ao suposto direito divino dos reis ungidos, o individualismo opunha os direitos inalienáveis conferidos ao homem por seu criador.  Contra a pretensão do estado de impor a ortodoxia e exterminar aquilo que ele considerasse heresia, o individualismo proclamou a liberdade de consciência.  Contra a inflexível preservação de antigas instituições que se tornaram detestáveis com o passar do tempo, o individualismo recorreu à razão.  Assim, ele inaugurou uma era de liberdade e progresso rumo à prosperidade.

Os filósofos liberais dos séculos XVIII e XIX não imaginaram que uma nova ideologia surgiria para rejeitar resolutamente todos os princípios da liberdade e do individualismo, e para proclamar que a total submissão do indivíduo à tutela de uma autoridade paternal era o mais desejável objetivo da ação política, o mais nobre fim da história, e a consumação de todos os planos que Deus tinha em mente ao criar o homem.

Não apenas Hume, Condorcet e Bentham, mas até mesmo Hegel e John Stuart Mill teriam se recusado a acreditar caso alguns de seus contemporâneos tivessem profetizado que no século XX a maioria dos escritores e cientistas da França e dos países anglo-saxões iria se tornar entusiasta de um sistema de governo que eclipsa todas as tiranias do passado ao praticar uma impiedosa perseguição de dissidentes e ao fazer de tudo para privar o indivíduo de toda e qualquer oportunidade de incorrer em atividades espontâneas.  Seria considerado um lunático o homem que dissesse a eles que a abolição da liberdade, de todos os direitos civis e do governo baseado no consenso do governado seria chamada de libertação.  Entretanto, tudo isso aconteceu.

O historiador pode entender e fornecer explicações psicológicas para essa radical e repentina mudança na ideologia.  Porém, tal interpretação de modo algum invalida as análises e críticas que os filósofos e economistas fizeram das doutrinas charlatãs que geraram esse movimento.

O pilar da civilização ocidental está no âmbito das ações espontâneas que ela assegura ao indivíduo.  Sempre houve tentativas de reprimir a capacidade de iniciativa do indivíduo, mas o poder dos opressores e inquisidores nunca foi absoluto.  Não se conseguiu impedir o surgimento da filosofia grega e de seu desdobramento romano, bem como o desenvolvimento da ciência moderna e da filosofia.

Guiados pelo seu gênio inato, os pioneiros consumaram suas obras a despeito de toda hostilidade e oposição.  O inovador não teve de esperar pelo convite ou pela ordem de ninguém.  Ele pôde avançar de acordo com sua própria vontade e assim desafiar os ensinamentos tradicionais.  Na esfera das ideias, o Ocidente em geral sempre usufruiu as bênçãos da liberdade.

E então veio a emancipação do indivíduo no campo dos negócios, um feito do novo ramo da filosofia: a economia.  Plena liberdade foi dada ao homem empreendedor que sabia como enriquecer seus semelhantes por meio do aprimoramento dos métodos de produção.  Uma abundância de bens foi despejada sobre o homem comum em decorrência da adoção do princípio capitalista da produção em massa para a satisfação das necessidades das massas.

Para avaliarmos corretamente os efeitos da ideia ocidental de liberdade, temos de contrastar o Ocidente com as condições predominantes naquelas partes do mundo que jamais compreenderam o significado de liberdade.

Alguns povos do Oriente desenvolveram a filosofia e a ciência muito antes dos antepassados da atual civilização Ocidental terem emergido do barbarismo primitivo.  Há boas razões para supor que a astronomia e a matemática gregas ganharam seu primeiro impulso ao entrarem em contato com o que já havia sido realizado no Oriente.

Mais tarde, quando os árabes adquiriram um conhecimento da literatura grega por meio das nações que eles haviam conquistado, uma extraordinária cultura islâmica começou a florescer na Pérsia, na Mesopotâmia e na Espanha.  Até o século XIII, a ciência árabe não era inferior às façanhas contemporâneas do Ocidente.  Mas então a ortodoxia religiosa islâmica impôs o conformismo permanente e inabalável, e, com isso, pôs fim a toda atividade intelectual e a todo pensamento independente que existiam até então nos países muçulmanos, como já havia acontecido antes na China, na Índia e na esfera do cristianismo oriental.

As forças da ortodoxia e a perseguição de dissidentes, por outro lado, não conseguiu silenciar as vozes da ciência e da filosofia ocidentais, pois o espírito da liberdade e do individualismo já estava forte o bastante no Ocidente para sobreviver a todas as perseguições.  Do século XIII em diante, todas as inovações intelectuais, políticas e econômicas originaram-se no Ocidente.  Até que o Oriente voltasse a prosperar há apenas algumas décadas, quando entrou em contato com o Ocidente, o histórico dos grandes nomes da filosofia, das ciências, da literatura, da tecnologia, do governo e dos negócios dificilmente mencionava algum oriental.

O Oriente estava estagnado em um conservadorismo rígido até o momento em que as ideias ocidentais começaram a se infiltrar.  Para os orientais, coisas como escravidão, servidão, intocabilidade, costumes como osati ou a mutilação dos pés das meninas, punições bárbaras, miséria em massa, ignorância, superstição e desprezo por hábitos de higiene não lhes afetavam em nada.  Incapazes de compreender o significado da liberdade e do individualismo, eles estão ainda hoje encantados com o programa do coletivismo.

Embora esses fatos sejam bem conhecidos, milhões de pessoas hoje apóiam entusiasmadamente políticas que intencionam substituir o planejamento autônomo do indivíduo pelo planejamento feito por uma autoridade.  Tais pessoas estão ansiosas para se tornarem escravas.

Obviamente, os paladinos do totalitarismo protestam dizendo que o que eles querem abolir é “apenas a liberdade econômica”, sendo que todas “as outras liberdades” permanecerão intocadas.  Porém, a liberdade é indivisível.  Essa distinção entre a esfera econômica da vida e da atividade humana e a esfera não-econômica é a pior de suas falácias.  Se uma autoridade onipotente possui o poder de especificar para cada indivíduo qual tarefa ele deve efetuar, então não lhe restou nada que possa ser chamado de liberdade ou autonomia.  Ela poderá apenas escolher entre obediência estrita ou morte por inanição.

Pode-se formar comitês de especialistas para aconselhar a autoridade planejadora sobre se um jovem deve ou não ter a oportunidade de trabalhar no campo artístico ou intelectual.  Porém, tal arranjo irá meramente educar discípulos dedicados à repetição, qual papagaios, das ideias inventadas pela geração anterior à dele.

Inovadores que discordassem das maneiras pré-aprovadas de se pensar seriam barrados.  Nenhuma inovação jamais teria sido realizada caso seu inventor tivesse de pedir autorização para aqueles de cujos métodos e doutrinas ele quisesse divergir.  Hegel jamais teria autorizado Schopenhauer ou Feuerbach, tampouco o professor Rau teria autorizado Marx ou Carl Menger.

Se o comitê de planejamento supremo tiver de determinar em última instância quais livros devem ser impressos, quem pode fazer experimentos nos laboratórios, quem deve pintar ou fazer esculturas, e quais alterações devem ser feitas em métodos tecnológicos, não haverá nem melhorias nem progresso.  O indivíduo se torna um peão nas mãos dos soberanos, os quais, em sua “engenharia social”, irão manuseá-lo da mesma maneira que engenheiros manuseiam os objetos com os quais constroem edifícios, pontes e máquinas.

Em todas as esferas da atividade humana, uma inovação é um desafio não apenas para aqueles que gostam de seguir rotinas e para os especialistas e praticantes de métodos tradicionais; é um desafio ainda maior para aqueles que no passado foram inovadores.  Toda inovação enfrenta, em seu começo principalmente, uma obstinada oposição.  Tais obstáculos podem ser superados em uma sociedade em que haja liberdade econômica.  Mas eles são intransponíveis em um sistema socialista.

A essência da liberdade de um indivíduo é a oportunidade de divergir e se distanciar das maneiras tradicionais de se pensar e de se fazer as coisas.  O planejamento feito por uma autoridade central estabelecida impossibilita todo e qualquer planejamento feito pelos indivíduos.

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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