Anarcocapitalismo além do Libertarianismo

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[Resenha do livro O mínimo sobre Anarcocapitalismo, de Paulo Kogos, Editora O Mínimo, 2023]

Qual é a diferença entre anarcocapitalismo e libertarianismo, se é que existe alguma? Alguns autores os tratam como sinônimos. Lew Rockwell, uma vez perguntado o que é anarcocapitalismo, respondeu descrevendo o libertarianismo, ou seja, a sociedade baseada no princípio da não-agressão (PNA). Daniel Carreiro faz a mesma coisa em sua breve introdução ao anarcocapitalismo. Já o professor Marco Batalha faz uma pequena diferenciação, chamando de anarcocapitalismo o sistema econômico de livre-mercado que se origina do libertarianismo. Seria apenas uma questão de semântica?

O que pode complicar a diferenciação dos dois vocábulos é que o termo anarcocapitalismo foi cunhado por Murray Rothbard, que é também o pai do libertarianismo moderno, a filosofia que uniu a tradição dos anarquistas americanos com os conceitos da Escola Austríaca de economia. O principal objetivo do termo era se diferenciar dos anarquistas socialistas – que alucinadamente acham que uma sociedade sem estado seria socialista – e dos minarquistas ou libertários do estado mínimo – que ainda mais alucinadamente acham que um violador de propriedade privada pode e deve ser um protetor de propriedade privada. O fato de defensores do estado também serem descritos como libertários confunde tudo mais ainda, pois se o libertarianismo é definido pelo PNA, estatistas como Ayn Rand e Mises não devem ser considerados libertários.

O caso da conversão do professor Walter Block serve para mostrar por que Rothbard teria criado o termo anarcocapitalismo. Block era um minarquista randiano; se considerava libertário mesmo defendendo um estado mínimo. Em 1966 ele conheceu Rothbard, e após uma conversa de 10 minutos, ele deixou de apoiar a existência do estado e se tornou um anarquista:

Eu já tinha aprendido argumentos econômicos com Hazlitt em Economia Numa Única Lição, que se aplicavam a coisas como correios, DETRAN, estradas etc., sobre por que a concorrência e a busca pelo lucro garantem um produto melhor. Murray apenas me forçou a ver que isso se aplicaria, também, aos exércitos, tribunais e polícia do governo.

De fato, Rothbard considerou que o primeiro anarcocapitalista da história foi alguém que aplicou o argumento econômico da maior eficiência na provisão de bens e serviços do livre mercado ao setor de serviços de segurança, Gustave de Molinari, que em 1849 concluiu que a proteção deveria ser fornecida por entes privados concorrendo livremente. Para isso, “Molinari fundamentou o seu argumento com a ciência econômica de livre mercado laissez-faire”. Portanto, é possível que alguém seja anarcocapitalista sem ser se basear no PNA. Este parece ser o caso de Paulo Kogos, conforme exposto em seu pequeno grande livro O mínimo sobre Anarcocapitalismo. Pequeno pois vem no formato pocket book, daqueles que realmente cabem no bolso. Grande pois, mesmo no diminuto espaço de 200 páginas pocket, aborda praticamente todas as questões prementes da filosofia política, com o autor condensando anos de leituras sobre cada tema em poucos parágrafos que revelam toda a sua erudição. Por causa disso eu lanço a minha primeira crítica ao livro, pois seu título é enganoso: deveria ser “Quase tudo sobre Anarcocapitalismo”. Kogos se classifica como um libertário, mas no sentido mais amplo e confuso do termo por não ser um adepto do PNA. De fato, Kogos critica a ética libertária de Rothbard e a ética argumentativa de Hoppe (págs. 19-24) – e por eu me considerar um libertário adepto do PNA, gostaria de responder a algumas de suas críticas.

A ética argumentativa hoppeana, ignorando a natureza humana, procura meramente conciliar todas as diferenças segundo um critério racionalista com a finalidade utilitária de minimizar conflitos. (pág. 20)

Se a característica definidora da natureza humana é a racionalidade, o critério racionalista não ignora a natureza humana, mas, ao contrário, a toma como base. Esta ética parte do princípio de que a razão humana é capaz de descobrir quais são as normas (dadas por Deus ou pela Natureza, vai do gosto do freguês) para uma interação humana pacífica, i.e., livre de conflitos. E não é adequado chamar esta finalidade de utilitária, pois uma ética utilitarista se preocuparia em estabelecer normas que satisfizessem o máximo possível o maior número de pessoas – algo como uma “norma democrática”. Ora, Hoppe pode ser considerado o maior inimigo da democracia, e sua ética jamais seria baseada neste tipo de critério. Quando Hoppe estabelece que a finalidade de uma norma (qualquer norma) é evitar conflitos, ele está apenas dissecando o significado dos termos norma, lei, regra etc. Se Kogos quiser usar um significado diferente, isto torna-se uma questão semântica, mas as normas são regras de uso de meios escassos que objetivam evitar conflitos. Esta é a definição comumente usada. Por exemplo: assim Alberto da Costa e Silva descreve a origem de um Estado em sua obra sobre a história da África dos australopitecos à chegada dos portugueses, A enxada e a lança:

Na estação seca, grupos vindos de diferentes áreas reuniam-se junto a um mesmo pedaço de rio. Gente que vivia isolada pelas águas, na época das chuvas, sob o comando dos chefes de linhagens, tinha de conviver, no estio, com estranhos e de estabelecer regras de conduta que evitassem conflitos e choques. … As terras, nas ribanceiras, eram, porém, escassas. E havia que lhes regular o uso. E distribuí-las de forma a evitar conflitos. Surgiu, assim, um árbitro entre as linhagens, um príncipe, o jago, que possivelmente era o chefe do grupo mais antigo fixado no local. (ênfases adicionadas)

No entanto, como Hoppe e Rothbard notam, a finalidade de evitar conflitos não é a única característica que deve necessariamente possuir uma norma. Para uma norma ser válida, além de evitar conflitos, ela deve ser universal, i.e., igual para todos e em todos os lugares. Desta forma, as normas que estabeleceram este estado africano não passam no teste da universalidade. Assim prossegue o relato de Costa e Silva:

A família mais forte ou a mais antiga entre as que ocupavam a margem do rio impunha-se sobre as demais. E criavam-se novas formas de solidariedade e de controle sociais.

Ou seja, criavam-se duas leis diferentes, uma válida para os subjugados e outra para os dominantes. Esta é uma norma estatista que não evita conflito, apenas oficializa um conflito constante. Quando as normas não cumprem o critério da universalidade e quando não são estabelecidas através de argumentações – e, deste modo, respeitando a propriedade privada dos interlocutores sobre seus próprios corpos – em algum momento, uma das partes irá “partir para a ignorância”, ou seja, irá agredir a propriedade do outro para, através da força, impor sua opinião de como um bem escasso deve ser alocado. A ética da propriedade privada, e somente a ética da propriedade privada, pode ser considerada uma norma válida, descoberta pela natureza racional do homem, partido da definição do termo “norma” e não levando em consideração qualquer apelo utilitarista.

Na sequência, Kogos usa situações extremas para justificar a invalidade da ética libertária:

Os adeptos da ideologia libertária professam desde a ilegitimidade de um bombeiro pegar água de uma piscina privada sem consentimento do dono pra evitar uma explosão catastrófica até o direito dos pais deixarem o filho bebê morrer de fome. (pág. 22)

Rothbard já respondeu a este tipo de crítica que ele chamou de “situações de barco salva-vidas”:

uma situação de vida ou morte dificilmente é um teste válido para uma teoria de direitos, ou para qualquer teoria moral.  Os problemas de uma teoria moral em tais situações extremas não invalidam uma teoria para situações normais.  Em qualquer esfera da teoria moral, tentamos conceber uma ética para o homem, baseada em sua natureza e na natureza do mundo — e isso quer dizer precisamente a natureza normal, o modo que a vida normalmente é, e não situações raras e anormais.  Uma máxima sábia da lei, exatamente por esta razão, é a de que “casos difíceis geram leis ruins”.  Estamos tentando elaborar uma ética para o modo como o homem vive habitualmente no mundo; afinal, não estamos interessados em elaborar uma ética focada em situações que são raras, extremas e quase nunca encontradas.

No caso da piscina, os direitos de propriedade não desaparecem nesta situação extrema. A água da piscina é propriedade do dono da piscina. Ele pode posteriormente acionar os bombeiros na justiça demandando que eles paguem pela água necessária para encher novamente a piscina, que por sua vez será cobrada do dono da piscina pela empresa fornecedora de água. Nada mais justo. Já no caso do bebê deixado morrer de fome, diferentemente de uma piscina, filhos não são propriedade dos pais. Eles são indivíduos autônomos detentores de direitos, e os pais possuem apenas o direito de guarda dos filhos. A negligencia de pais que prejudicam ou levam seus filhos à óbito pode ser punível. Quando Rothbard fala do direito dos pais deixar os filhos morrerem de fome, ele se refere a uma ausência de obrigação legal que os force através da violência a prover as necessidades dos filhos – algo como a execrável lei de pensão alimentícia que tanto contribui para a destruição da família. Nunca entendi porque alguém iria querer gastar recursos para coagir através do uso da força um pai a alimentar seu filho ao invés de gastar muito menos recursos para alimentar diretamente a criança, e sem violência alguma.

Kogos prossegue sua crítica com uma suposta refutação bíblica do libertarianismo:

Estas e tantas outras absurdidades ….seguem da idolatria da autopropriedade, conceito refutado por 1 Cor 6, 19: “Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?” (pág. 22)

Embora eu concorde totalmente com esta passagem da carta de São Paulo aos coríntios, não consegui enxergar refutação alguma ao conceito de autopropriedade e desconheço onde existe uma idolatria ao mesmo. A autopropriedade é um fato da realidade. Ser proprietário de algo significa apenas ter o direito de decidir o que fazer com este algo. Se eu não sou proprietário do meu corpo, outra pessoa é, e eu devo obedece-la. Eu sou um escravo e ela é meu mestre. Quando São Paulo nos diz que nosso corpo é templo do Espírito Santo e já não nos pertence, isso quer dizer que devemos escolher colocar a nossa autopropriedade à serviço de Deus. Deus nos deu também o livre arbítrio, e o conceito de livre arbítrio é indissociável do conceito de autopropriedade. Se eu não sou proprietário do meu corpo, não possuo livre arbítrio, e vice-versa.[1]

Kogos prossegue com sua investida:

Quando perguntados se, em situações práticas, manter-se-iam sempre fiéis aos ditames da ética libertária, seus ideólogos respondem que ética e moral são coisas diferentes e que alguns atos antiéticos poderiam ser morais. Trata-se claramente de paralaxe cognitiva, que Olavo de Carvalho define como desvio do eixo de construção teórica de um indivíduo em relação às suas experiências reais. Moral e ética são sinônimos, diferindo apenas na raiz etimológica … e dizem respeito à normatividade das ações humanas em todas as situações. É verdade que há condutas que, embora imorais, não devem ser proibidas legalmente. … Santo Agostinho dizia que se proibissem o pecado da prostituição, a luxúria represada convulsionaria o mundo. (págs. 22-23)

Primeiramente temos aqui novamente uma questão semântica. Em sua introdução ao A ética da liberdade, Hoppe explica que:

[A]quilo que a ética humana deve responder [é a] questão de o que se tem permissão de fazer aqui e agora, visto que não se pode deixar de agir dado que se esteja vivo e desperto, e dado que os meios e bens que se deve utilizar são sempre escassos, de modo que pode haver conflitos interpessoais a respeito de seu uso.

Então, independentemente da etimologia das palavras, Kogos está usando definições diferentes dos autores libertários. E as definições que ele usa são problemáticas, pois se “há condutas que, embora imorais, não devem ser proibidas legalmente” a ética, sendo sinônimo de moral, não tem nada a dizer sobre o que podemos ou não podemos fazer. Mesmo usando definições diferentes para ética/moral, estas perguntas precisam ser respondidas para podermos agir. A diferenciação entre ética e moral que Kogos descarta como etimologicamente inválida é, na realidade, muito superior para responder a questão da ética exposta por Hoppe. A ética responde o que podemos fazer, a moral responde o que deveríamos fazer. Muitas condutas imorais não são e nem deveriam ser ilegais, como contar mentiras, traição, gula, promiscuidade, pornografia (que é proibida em alguns países como nas Coreias, do Norte e do Sul). Outras condutas imorais são proibidas e não deveriam ser como drogas, suicídio, jogos de azar e mesmo a prostituição do exemplo de Agostinho, que é proibida em muitos países do mundo. A ética da propriedade privada responde o que deve ser proibido pela lei e o que deve ser legal. Ela não diz respeito à moralidade dos atos, embora tudo que é proibido também seja considerado imoral, como homicídio, roubo, estupro, sequestro. Mas atos imorais que não violem a propriedade de terceiros não devem ser proibidos, e isto coaduna com o livre arbítrio nos dado por Deus, para que sejamos livres para escolher as condutas morais e rejeitar as imorais.

Todavia, voltando à questão das situações de barco salva-vidas, realmente podem existir circunstâncias em que atos ilegais podem ser morais, como o exemplo dos bombeiros roubando água de uma piscina para evitar uma tragédia. Estas contingências seriam um dilema para a ética libertária?  Como explicado acima, a ética da liberdade é o melhor padrão que um juiz que receba a reclamação do dono da piscina pode usar para determinar quem deve pagar pela água roubada, mesmo que o roubo seja considerado moral. Então não tem nenhum problema de paralaxe cognitiva nisso. Um roubo sempre é um roubo, mas um juiz deve sempre levar em consideração o contexto para determinar o grau da punição. Leis não são exatas, automáticas ou robóticas; no final das contas, elas são um critério (objetivo) a ser seguido por um árbitro (subjetivo).

Em seguida Kogos traz uma preocupação importante, mas que erra o alvo:

Este individualismo subversivo, ao renegar a autoridade dos princípios que antecedem e plenificam o indivíduo, como as boas tradições, levam a cegueira da razão, ao enfraquecimento do tecido social e, consequentemente à perda da liberdade, pois limitam o escopo desta ao seu aspecto negativo, que é o de ausência de coerção. (pág. 24)

Existe um tipo de libertarianismo raso, limitado, que se resume exclusivamente a observância do PNA. Este libertarianismo pode ser identificado com o ex-youtuber (desaparecido há anos) Daniel Fraga, que apesar de nos brindar com vídeos magníficos em que ele aplica os insights libertários a diversos episódios contemporâneos, e de ser um mártir que colocou seu bem estar em risco e enfrentou abertamente o aparato estatal de coerção e compulsão, sua compreensão restrita fez com que ele direcionasse seus ataques também a instituições que são fundamentais na luta contra o poder estatal, como a religião e as boas tradições. A crítica de Kogos é correta e necessária quando direcionada a este tipo de libertarianismo. Mas o libertarianismo não se resume a isso. Foi para se afastar deste tipo de libertários que, em 1990, Murray Rothbard e Lew Rockwell passaram a se denominar paleolibertários. Eles estipularam que a liberdade é imprescindível, porém não suficiente e que eles também defendiam os valores da cultura ocidental.

Acompanhei a trajetória de Kogos dentro do libertarianismo desde que eu o converti para o lado amarelo e negro da força e vi o quanto ele, por ser um católico com fortes valores conservadores, se atormentou com este tipo de libertário (por aqui também chamados de liberteens), chegando ao ponto de atacar o libertarianismo como um todo por conta deles. Eu me tornei libertário antes de me tornar católico, e o meu catoliscismo não entrou em grandes conflitos com meu libertarianismo justamente porque eu já era um paleolibertário. Mas foi em 2018 que realmente o meu libertarianismo e o meu catolicismo se consolidaram em uma coisa só. Neste ano fiz a peregrinação do Caminho de Santiago, e ela acabou sendo uma peregrinação austro-católica-libertária. Além de ter como destino a catedral onde está sepultado o apóstolo Tiago Maior, aproveitei a oportunidade para conhecer pessoalmente uma das maiores mentes libertárias de nosso tempo, o professor galego Miguel Anxo Bastos, que dá aulas na Universidade de Santiago de Compostela e era o presidente da associação austrolibertária Xoán de Lugo. Anxo Bastos é um libertário católico e seu instituto inclusive possui um padre como membro. Os membros do Xoán de Lugo são bem diferentes dos libertários que deixaram Kogos desgostoso com o libertarianismo.

Mas minha peregrinação austro-católica-libertária não terminou aí. Em seguida fui conhecer a católica Polônia e depois fui recebido por Hoppe, em Bodrum, Turquia, na reunião anual de sua Property and Freedom Society. Eu achava que esta parte da peregrinação seria exclusivamente libertária, mas Hoppe (que também é paleolibertário) proferiu um discurso que terminou de fundir meu libertarianismo com meu catolicismo. Ele identificou a Europa medieval católica como o período da história em que existiu uma sociedade mais próxima do ideal da sociedade libertária e destacou que um código moral, como os Dez Mandamentos, é necessário além da mera ética libertária:

[O]s mandamentos bíblicos vão além do que muitos libertários consideram ser suficientes para o estabelecimento de uma ordem social pacífica: a mera adesão estrita aos mandamentos seis, oito e dez. Entretanto esta diferença entre um libertarianismo estrito e rígido e os dez mandamentos bíblicos não implica em nenhuma incompatibilidade entre os dois. Ambos estão em completa harmonia fazendo-se apenas uma distinção entre proibições legais, por um lado, expressas no mandamento seis, oito e dez, violações que podem ser punidas pela utilização de violência física, e proibições morais ou extra-legais pelo outro lado, expressas pelos mandamentos cinco, sete e nove, violações que podem ser punidas somente por meios abaixo do limiar da violência física, como ostracismo, exclusão, discriminação ou reprovação social. Na verdade, assim interpretada a totalidade dos seis mandamentos mencionados pode ser reconhecida como um aprimoramento de um libertarianismo estrito e rígido.

Se este trecho não é o suficiente para rebater a acusação de Kogos contra o libertarianismo, o resto do discurso certamente será.

Até agora comentei sobre passagens que discordei contidas em apenas cinco páginas. Nas outras 195 páginas eu pude encontrar apenas uma outra ideia da qual discordo, a crítica de Kogos ao caráter wertfrei (livre de juízo de valor) da praxeologia:

Este racionalismo [da Escola Austríaca de Economia] ignora as nuances da alma tanto quanto o empirismo dos econometristas, levando seus adeptos a cometer erros ainda mais graves como isentar a economia de juízos de valor ou tentar explicar fenômenos sociais como mero resultado das ações individuais tomadas isoladamente (o chamado individualismo metodológico). … Desprezando o papel das virtudes e a substancialidade das agremiações humanas, um liberal da Escola Austríaca não consegue, por exemplo, explicar a relação direta entre a virtude do patriotismo e a prosperidade material. (págs. 82-83)

Primeiramente, recriminar a praxeologia por ser wertfrei é tão absurdo quanto recriminar a matemática por não enunciar nenhuma apreciação sobre a virtude da constatação de que 2 + 2 resulta em 4. A praxeologia é uma ciência apriorística lógico dedutiva de causa e consequência. Assim como a matemática, ela se limita a dizer que a medida A terá a consequência B. Mises explica:

A praxeologia não é uma ciência histórica, mas uma ciência teórica e sistemática. Seu escopo é a ação humana como tal. Independentemente de quaisquer circunstâncias ambientais, acidentais ou individuais que possam influir nas ações efetivamente realizadas. Sua percepção é meramente formal e geral, e não se refere ao conteúdo material nem as características particulares de cada ação. Seu objetivo é o conhecimento válido para todas as situações onde as condições correspondam exatamente àquelas indicadas nas suas hipóteses e inferências. Suas afirmativas e proposições não derivam da experiência. São como a lógica e a matemática. Não estão sujeitas a verificação com base na experiência e nos fatos. São tanto lógica como temporalmente anteriores a qualquer compreensão de fatos históricos. É um requisito necessário para qualquer percepção intelectual de eventos históricos. Sem sua ajuda, nossa percepção do curso dos eventos históricos ficaria reduzida ao registro de mudanças caleidoscópicas ou de uma desordem caótica.

Em segundo lugar, o individualismo metodológico não despreza nenhuma “substancialidade das agremiações humanas”, ele apenas ressalta que as ações de agremiações humanas são ações de indivíduos reunidos em uma agremiação de humanos. Rothbard esclarece:

Apenas o indivíduo possui uma mente; apenas o indivíduo pode sentir, ver, realizar e entender; apenas o indivíduo pode adotar valores e fazer escolhas; apenas o indivíduo pode agir. Este princípio primordial do “individualismo metodológico”, central ao pensamento social de Max Weber, deve fundamentar tanto a praxeologia quanto todas as outras ciências da ação humana. Ele implica que conceitos coletivos como grupos, nações e estados não agem ou não existem realmente; eles são apenas construções metafóricas utilizadas para descrever as ações similares ou conjuntas de indivíduos. Em suma, não existem “governos” por si sós; existem apenas indivíduos agindo harmoniosamente de uma maneira “governamental”. Max Weber coloca de forma cristalina:
“Estes coletivos devem ser tratados unicamente como sendo os resultados e os modos de organização das ações particulares de agentes individuais, uma vez que apenas estes podem ser tratados como agentes no curso de uma ação subjetivamente compreensível. . . . Para propósitos sociológicos. . . não existe algo como uma ‘personalidade coletiva que “age”‘. Quando se faz referências, em um contexto sociológico, às . . . coletividades, está-se na verdade se referindo . . . somente a um certo tipo de desenvolvimento das ações sociais possíveis ou efetivas de pessoas específicas.”

E o exemplo que Kogos apresenta em sua crítica serve para invalida-la ainda mais. Primeiro que não existe essa “relação direta entre a virtude do patriotismo e a prosperidade material”. Por toda a história, muitos reinos, tribos e países pobres tiveram forte sentimento patriótico, e se mantiveram pobres. Como a praxeologia nos mostra através de seu racionalismo livre de juízo de valor, o que existe é uma relação direta entre a liberdade econômica e a prosperidade material. Ademais, Mises e Rothbard possuem trabalhos profundos sobre nações que de maneira nenhuma ignoram as consequências do patriotismo.

Após esta minha análise de dois trechos do livro que eu discordo, fica difícil escolher pontos do livro que eu concordo para destacar. São tantos que praticamente o livro todo merece ser enfatizado e elogiado. A despeito dessas divergências com a ética libertária, os autores mais citados no restante do livro são Rothbard e Hoppe (talvez empatados com Aquino), como era de se esperar em um livro sobre anarcocapitalismo. Isto em meio a centenas de autores citados, com uma sucinta profundidade que só alguém que os leu copiosamente e os absorveu poderia condensar desta maneira. Para não fazer nenhuma injustiça, e para este artigo não ficar muito maior do que já está, vou destacar apenas a passagem em que eu fui mencionado:

A questão de como o indigente poderia pagar por saúde, como nos lembra o praxeologista Fernando Chiocca, poderia ser respondida de três formas:

I. Cada um que se dane

II. Vamos promover a caridade e as inovações de mercado para provê-lo

III. Vamos assaltar pessoas inocentes para provê-lo

Lamentavelmente, a terceira solução, que é a única criminosa, é a primeira a ser aventada, apesar dos inúmeros exemplos históricos comprovando a tese de Mises de que todas as sociedades minimamente civilizadas adotam a segunda solução. (pág. 159)

Há muitos anos eu uso essa constatação sobre as alternativas disponíveis para responder – não exatamente nessas palavras acima – a essa questão, que sempre surge quando falamos da privatização total dos serviços de saúde. Como surgiu, por exemplo, no ano passado enquanto eu participava, ao lado de Kogos, de uma live dos Médicos Pela Vida (minuto 27:02). E o mais paradoxal é que as pessoas que lançam essa provocação, advogando pelo sistema de saúde soviético contra o livre mercado, se consideram paladinos benevolentes que estão lutando contra gananciosos capitalistas em nome dos pobres necessitados. É sempre satisfatório esclarecer que, em primeiro lugar, o que eles estão dizendo é que para A salvar a vida de B, ele deve ameaçar a vida de C, apontando uma arma para a cabeça dele e dizendo “passa a grana ou morre”. Pois, em última análise, é exatamente assim que o sistema criminoso de saúde pública se financia. Após essa constatação, qualquer benevolência e preocupação pela vida de terceiros que eles reivindicavam, evapora. Em segundo lugar, os justiceiros sociais caridosos não estão defendendo os desfavorecidos. Na realidade estão piorando o acesso deles a serviços de saúde enquanto protegem os privilégios de uma casta burocrática apparatchik e de uma classe profissional mafiosa.

Uso este argumento pois o considero o melhor que existe. Kogos tem essa capacidade de captar o melhor que cada pessoa tem a oferecer, desde seus contatos pessoais até os grandes pensadores da história da humanidade, e ele reúne muitos dos melhores argumentos em prol da liberdade em seu livro sobre o anarcocapitalismo. Espero que este seja o primeiro de muitos livros desse autor talentoso. Ao passo que é crucial que o libertarianismo seja complementado por considerações de moral, cultura e tradições, minha preocupação é que, ao rejeitar a ética da liberdade, Kogos se afaste mais do libertarianismo e acabe deixando de favorecer o anarcocapitalismo em nome de um outro tipo de sistema; o kogosianismo.

 

 

Leia também: Além do PNA: Rothbard e sua defesa completa da liberdade

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Notas

[1] Na realidade, mesmo os escravos continuam sendo proprietários de seus corpos, pois em última instância são eles que escolhem colocar (ou não colocar) seus corpos à serviço de seu senhor ao invés de sofrer (ou sofrer) os castigos que seriam infligidos ao seu corpo. O corpo é uma propriedade inalienável, ou seja, a autopropriedade é intransferível, invendível e incessível; autopropriedade é um conceito irrefutável e inegável. Veja mais em Stephan Kinsella, Como nos tornamos donos de nós mesmos.

7 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns e muito obrigado pelo artigo, certamente um dos melhores já publicados não apenas aqui mas em toda a “libertosfera” mundial !

  2. Excelente!

    Aquele vídeo do médicos pela vida eu fiz uma cópia e coloquei no meu canal do YouTube. Ele ficou um ano no ar até que fosse retirado com a desculpa padrão de desinformação…

  3. Excelente texto, gosto muito dos textos do Fernando.
    Só não entendo pq esse livro do kogos não está disponível aqui no instituto

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